quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Das charges para a boca do povo: Como surgiu a expressão "Amigo da Onça"?

O "Amigo da Onça" foi um personagem criado pelo cartunista pernambucano Péricles de Andrade Maranhão e publicado pela primeira vez há 69 anos, em 23 de outubro de 1943, em uma charge na revista "O Cruzeiro".


Ele nasceu por sugestão do então diretor da revista, Leão Gondim de Oliveira, fã do personagem "El enemigo del Hombre" (O Inimigo do Homem), criado pelo argentino Guillermo Divito (Revista Patoruzú). Gondim queria um tipo bem carioca, esperto, que sempre leva a melhor sobre os outros.


Para compor o tipo físico do personagem, o chargista se inspirou em um garçom muito chato do bar onde esboçava suas piadas, que sempre se aproximava para saber o que ele estava fazendo. Ao descobrir que ele vivia disso, comentou: "Puxa, eu queria ter esse vidão!".


O nome do personagem, que acabou virando sinônimo de amigo falso, que vive colocando os outros em situações perigosas ou embaraçosas, foi tirado de uma piada que fazia muito sucesso na época:

Dois caçadores conversam no acampamento:
— O que você faria se estivesse agora na selva e uma onça aparecesse na sua frente?
— Ora, dava um tiro nela.
— Mas se você não tivesse nenhuma arma de fogo?
— Bom, então eu matava ela com meu facão.
— E se você estivesse sem o facão?
— Apanhava um pedaço de pau.
— E se não tivesse nenhum pedaço de pau?
— Subia na árvore mais próxima!
— E se não tivesse nenhuma árvore?
— Saía correndo.
— E se você estivesse paralisado pelo medo?

Então, o outro, já irritado, retruca:
— Mas, afinal, você é meu amigo ou amigo da onça?

sábado, 19 de outubro de 2013

Poesia de Vinicius de Moraes


" A esse mundo, só a poesia poderá salvar ..."



O Poeta
  
A vida do poeta tem um ritmo diferente
É um contínuo de dor angustiante.
O poeta é o destinado do sofrimento
Do sofrimento que lhe clareia a visão de beleza
E a sua alma é uma parcela do infinito distante
O infinito que ninguém sonda e ninguém compreende.
  
Ele é o eterno errante dos caminhos
Que vai, pisando a terra e olhando o céu
Preso pelos extremos intangíveis
Clareando como um raio de sol a paisagem da vida.
O poeta tem o coração claro das aves
E a sensibilidade das crianças.
O poeta chora
Chora de manso, com lágrimas doces, com lágrimas tristes
Olhando o espaço imenso da sua alma.
O poeta sorri
Sorri à vida e à beleza e à amizade
Sorri com a sua mocidade a todas as mulheres que passam.
  
O poeta é bom.
Ele ama as mulheres castas e as mulheres impuras
Sua alma as compreende na luz e na lama
Ele é cheio de amor para as coisas da vida
E é cheio de respeito para as coisas da morte.
O poeta não teme a morte.
Seu espírito penetra a sua visão silenciosa
E a sua alma de artista possui-a cheia de um novo mistério.
a sua poesia é a razão da sua existência
Ela o faz puro e grande e nobre
E o consola da dor e o consola da angústia.
A vida do poeta tem um ritmo diferente
Ela o conduz errante pelos caminhos, pisando a terra e olhando o céu

Preso, eternamente preso pelos extremos intangíveis.


 Ausência
  
Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei ... tu irás e encostarás a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada
  
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu,
porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos.
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

(In : Forma e exegese - PC e P., p. 99)

 Ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.
(Novos poemas - PC e P,  p.155-156)



Soneto do amor total

Amo-te tanto, meu amor.. não cante
O humano coração com mais verdade ...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade

Amo-te afim, de um calmo amor prestante,
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente,
De um amor sem mistério e sem virtude
com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim muito a amiúde,
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.
(Rio, 1951 - P. 336)


Soneto do maior amor


Maior amor nem mais estranho existe
Que o meu, que não sossega a coisa amada
E quando a sente alegre, fica triste
E se a vê descontente, dá risada.

E que só fica em paz se lhe resiste
O amado coração, e que se agrada
Mais da eterna aventura em que persiste
Que de uma vida malaventurada.

Louco amor meu, que quando toca, fere
E quando fere vibra, mas prefere
Ferir a fenecer - e vive a esmo

Fiel à sua lei de cada instante
Desassombrado, doido, delirante
Numa paixão de tudo e de si mesmo.

Oxford, 1938
(Poemas, Sonetos e Baladas - PC e P., p. 202)


Soneto de fidelidade


De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Que vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

(Poemas, Sonetos e Baladas - PC e P.,  p. 183)