sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Uma lagartixa - Juan Burghi







- Trabalho prático do Curso de Tradução 2/2013 -



Uma lagartixa
Juan Burghi

Tradução:
Claudio Bertocchi, Débora Gutiérrez, Gabriela Saliva,
Lilián Endrigo, Nancy Nagata, Susana García Balmore

Coordenação:
Adriana Almeida


Manhã. Estio. Reflexo de sol. O pedregal da serra parece ranger no entendimento do lume. Sobre a superfície de um penhasco liso, como se estivesse se queimando, uma lagartixa se aquece ao sol. Seu traje de luzes concentra o sol e os esmaltes de todo um verão e sua presença fala dos três reinos: animal, pois se vê nela uma bestialidade; vegetal, por se assemelhar a um galhinho verde; e mineral, por parecer feita de cobre e mica. E também faz lembrar os quatro antigos elementos: a terra, em sua argila animada; a água, em seu aspecto de poça com lodo ao sol; o ar vibrátil, no espelho que a rodeia; e o fogo, no vivo flamejar de seus brilhos.
Assim, imóvel, hierática, é uma pequena deidade egípcia talhada primorosamente, do solícito triângulo de sua cabeça de olhos faiscantes, os suportes de suas patas, a serpe de seu corpo, até o chicote de sua cauda que se prolonga em um cordãozinho, apêndice este que, em caso de perigo, se for presa por ele, corta-o de uma dentada, abandonando-o, e durante vários minutos fica esse apêndice se retorcendo entre saltos, como uma minhoca que acabou de ser desenterrada.
Recebe toda a luz e a recria, transformando-a em reflexos e cores. Até mesmo o sol parece observá-la fixamente, e esse olhar do sol também a captura e, como se fosse um espelho, projeta-a aumentada. Ela toda é uma obra de arte acabada e perfeita, fruto de um artista mágico... Até a pedra na qual repousa, cinza e opaca, contribui para realçá-la.
Vendo essa talha inimitável, vem à minha lembrança uma lenda de terras astecas, lida não me lembro onde e chamada“A Lagartixa de Esmeraldas”:
“Era uma vez um padre santinho que morava ao pé de uma serra, entre as inocentes criaturas do Senhor, e a quem todos os pobres da região acudiam em suas aflições. Em uma manhã como esta, um índio necessitado de algo com que matar a fome de sua mulher e de seus filhos recorreu a ele. Encontrou-o numa trilha, perto de sua casa, e com a voz angustiada lhe contou suas dores, pedindo ajuda para aliviá-las.
O bom santinho que, por tudo dar, nada tinha, sentia-se comovido por tanta miséria, e profundamente entristecido por não poder remediá-la; e assim, comovido e abalado, começou a implorar a Graça Divina. Enquanto rezava, olhando ao seu redor, seus olhos se detiveram em uma lagartixa que tomava sol ao seu lado, e estendeu sua mão até ela, pegando-a suavemente. Com o contato dessa mão milagrosa, a lagartixa se transformou em uma joia de ouro e esmeraldas que foi entregue ao índio, dizendo-lhe: “Pega e vai até a cidade, pois, em alguma casa de penhores, algo vão te dar por isso”.
O índio obedeceu e, com o que conseguiu, não só acabou com a sua fome e a da sua família, mas também pôde comprar umas terras que depois progrediram. Anos mais tarde, quando a sua situação melhorou, achou que devia devolver ao legitimo dono aquela joia que tanto bem lhe tinha feito.
Ele a recuperou e, em uma linda manhã de verão, voltou com a joia à procura do santinho, o qual encontrou no mesmo lugar da primeira vez, ainda que muito mais velho e, como se fosse possível, ainda mais pobre.
- Santinho querido - disse-lhe o índio. Aqui lhe devolvo esta joia que um dia o senhor me deu e que tanto me serviu. Já não preciso dela, fique com a joia e talvez sirva para ajudar outra pessoa. Muito obrigado e que Deus o abençoe...

O velhinho já não se lembrava de nada. Com ar distraído, ele a pegou, deixando-a suavemente sobre uma pedra. Novamente e, pelo milagre de suas mãos, aquele objeto precioso voltou a ser o que antes tinha sido, uma lagartixa, que começou a andar lentamente em direção ao seu refúgio.

domingo, 10 de novembro de 2013

Na divisa entre vida e literatura

Historiadores afirmam que o mais importante personagem da literatura argentina teria sido inspirado num homem de carne e osso encontrado por Hernández em suas andanças

Por longo período, os argentinos irritaram-se com uma afirmação que consideravam mera demonstração da empáfia brasileira. Era-lhes muito ofensiva a ideia de que Martín Fierro, o gaucho por excelência, criação imortal de José Hernández, pudesse ter sido parido em Santana do Livramento, na região da Campanha do Rio Grande do Sul. Os vestígios deixados pelo poeta, entretanto foram dobrando a resistência. Em 1940, o jornalista J. M. Fernández Saldara, do jornal portenho La Prensa, perseguiu os rastros do poeta até a cidade brasileira, rompendo uma barreira — na Argentina, mencionava-se sempre rapidamente o exílio de Hernández no Brasil, eludindo-se o nome de Santana do Livramento. Hoje, praticamente não se duvida que a primeira parte do livro, publicada em Buenos Aires em dezembro de 1872, tenha sido escrita à mão numa caderneta de bolicho quando José Hernández se alojava num dos quartos da casa do comerciante espanhol Pedro Garcia. O prédio ainda resiste, apesar de várias agressões, na esquina das ruas Rivadávia Correa e Uruguai.

"A la luz de las estrellas", Fernando Romero Carranza, reprodução/ZH

No ensaio que escreveu sobre o poema fundamental da literatura argentina, Jorge Luis Borges comenta: "Fugiu, dizem que a pé, para a fronteira com o Brasil. Umas palavras reticentes, estampadas no prólogo de Martín Fierro, dizem que a composição desta obra o ajudou a fugir do tédio da vida do motel; Lugones entende que esta referência é a um hotel da Praça de Maio, no qual ele improvisava o poema 'entre seus negócios de conspirador'; outros interpretaram que alude a Santana do Livramento, onde os gaúchos orientais e rio-grandenses traziam-lhe a lembrança dos gaúchos de Buenos Aires. Algumas locuções próprias da campanha do Uruguai parecem justificar essa conjetura".

Por aqui, a tese do Martín Fierro brasileiro volta e meia reaparece em páginas de jornais e livros, no descompasso da memória nacional. Mesmo nas ruas de Santana do Livramento há os quem nem têm ideia de quem foi José Hernández. As pessoas se espantam quando alguém, num momento raro, para junto ao maltratado prédio na Rivadávia e tenta decifrar as inscrições das placas ali pregadas. Mas o assunto já agitou mentes curiosas. Na juventude, o pesquisador tradicionalista Paixão Côrtes não descansou enquanto não conseguiu um exemplar da obra. Acabou indo com três à "casa de José Hernández" , como é conhecido o solar centenário onde o poeta viveu em Livramento. O jovem Paixão arrancou autógrafos de Belmira Garcia, filha do proprietário do imóvel histórico.

Pode parecer excessivo dar tanta importância a um aspecto à primeira vista circunstancial para louvar um punhado de tijolos soldados por cimento e barro. Na literatura, entretanto, nem sempre a razão é vencedora. Amantes das letras apaixonam-se por personagens, pontos topográficos e rochedos, como também por pessoas. Martín Fierro tornou-se um semideus. Como seus traços não deveriam provocar adoração? Portanto, não seria exagerado afirmar que em Santana do Livramento estão os despojos de um templo. Meio esquecido, é certo, mas mantendo uma pátina de sagrado. Nele, teria nascido um ser calcado na imagem do gaúcho comum que se tornaria sobre-humano.

Da guerra, tormento que perseguiu Martín Fierro, nasceu Martín Fierro. Numa dessas sangrentas revoluções típicas do pampa, não importando de que lado da fronteira, em que a peonada era recrutada sem ter escolha, e os gaúchos, caçados nos bolichos e nas estradas pelos esbirros dos chefes políticos. Em abril de 1870, a província de Entre Rios foi varrida pela violência. O caudilho Ricardo López Jordán sublevou-se contra o governo local. Um comando rebelde assaltou o palácio e assassinou o governador Justo José de Urquiza, causando comoção nacional. Acreditando que a vitória estava consolidada, López Jordán entrou com seus homens na capital, Concepción del Uruguai, e foi eleito governador pelo parlamento. O presidente argentino, Domingo Faustino Sarmiento, entretanto, não quis deixar impune o homicídio de Urquiza e enviou uma expedição militar contra os rebelados. Por longos meses, as brigadas legalistas caçaram, com constantes encontros sangrentos, os revoltosos entrerrianos. Hernández incorporou-se às hostes de López Jordán em novembro. No mês seguinte, as forças rebeldes foram completamente desbaratadas e seus líderes fugiram para o Uruguai e o Brasil.

Hernández foi obrigado a seguir os passos do chefe, que rumou para Santana do Livramento, a fim de fugir das tropas legalistas depois da derrota rebelde em Naembé. Nos seus calcanhares cavalgava o bando de um certo Fidelis, a mando do governo colorado. Fernández Saldara duvida que a viagem tenha sido feita a pé. "O mais provável é que tenha chegado ao povoado brasileiro pelas diligências do Salto Oriental." Na narrativa viva do historiador uruguaio Alfredo Lepro, a chegada dos fugitivos é digna do estilo imaginoso de Hernández: "Cruzando o fio de água barrenta do Curapirú, dirigem-se ao casario (cento e poucos ranchos e algumas casas de alvenaria. Essas últimas, quase todas de comércio). Pelo areal da rua principal voltam a encontrar a 'linha divisória' a 10 ou 12 quadras, pelas barrancas de terra vermelha, 'Santana do Livramento' no Brasil, onde vão parar na Estalagem dos Garcia. As pessoas os rodeiam, curiosas e ávidas de saber coisas. A hospitalidade da família do estalajadeiro propiciará tertúlias onde não falta o truco com seus improvisos em verso".

Em Santana do Livramento, Hernández reuniu-se a Juan Pirán e Pedro Aramburú, companheiros no levante contra Urquiza. Os dois eram considerados diretamente culpados do assassínio do governador entrerriano, foragidos da Justiça argentina. A situação da dupla era complicada pelo fato de serem residentes em Montevidéu, vistos como bárbaros estrangeiros, portanto. Numa carta pública, Aramburú alegava inocência. Garantia que ambos, no trágico entardecer de 11 de abril de 1870, limitaram-se a ficar do lado de fora do palácio, alheios às intenções dos que entraram na sede do governo. Acreditavam afirmava Aramburú, que o propósito era aprisionar o general. O jornalista uruguaio Martín Correa, morador de Rivera, sustenta que outro emigrado também os acompanhava na época: Olegário Vitor Andrade. 

Nascido em Alegrete, Andrade foi ainda criança para a Argentina. Educador — Correa o compara a Paulo Freyre —, Olegario foi deputado quando voltou do exílio e seu nome batiza inúmeras escolas na Argentina. De acordo com Alfredo Lepro, autor de Vida de José Hernández y su Amigo Martín Fierro, uma lembrança cutucava o espirito de Hernández no exílio. Ainda em solo argentino, ele teria cruza com um gaúcho de nome Martín Fierro, cujas histórias atiçaram a imaginação do poeta.

Contava-se que, nos momentos de ócio Hernández ia para a Praça Caxias (agora General Osório), e sentava-se nas proximidades do local onde agora está alojado seu busto. Sob as frondosas árvores, ele buscava a inspiração para contar a história do gaúcho valente e justo que combatia a injustiça, movido por seu próprio código de conduta. O idealismo do poeta também teria deixado rasgos na vida social de Livramento. O surgimento, logo depois de sua partida, da loja maçônica Caridade Santanense, seria um legado da militância de Hernández. Para compor seu libelo contra a desigualdade social com as cores tradicionais do pampa embrutecido, Hernández teria recorrido a um guasca de carne e osso.

O poeta gaúcho J. O. Nogueira Leiria, autor de uma tradução de Martín Fierro editada por ocasião do centenário da publicação original do poema, assegurava que o personagem era brasileiro antes de habitar os versos de Hernández. Na edição de 14 de setembro de 1957 do jornal Correio do Povo, Leiria escreveu: "Talvez como testemunho de sua gratidão, batizou o herói de seu poema com um nome que não era estranho naqueles pagos: Martín Fierro, famoso gaúcho do Rio Grande do Sul. A simples menção de seu nome fazia com que tirassem o chapéu respeitosamente os mais corajosos gaúchos da Banda Oriental, do Chuy até Paysandú e de Rivera a Montevidéu".

Outros autores também sustentam que Martín Fierro era um personagem real, antes de se tornar eterno. O uruguaio Rafael Velazquez encontrou algumas evidências, que publicou como parte da obra La Personalidad Historica de Martín Fierro. Um memorando militar anota o recrutamento do "indivíduo Martín Fierro" pelo Batallón 11° de Linea, em Azul. A data é de 16 de agosto de 1866. Mais adiante, Velasquez acrescenta outro documento que sugere registrar os rastros o gaúcho independente e marginal retratado no poema. Datado de 2 de agosto de 1866, o bilhete anuncia que o juiz de paz de Monsalvo sentenciou ao serviço das armas no Batallón 11° de Linea, "o indivíduo Melitón Fierro por feridas".

O historiador uruguaio ainda iria mais longe em suas investigações sobre a suposta existência de um modelo vivo para o personagem de Hernández. Em 28 de agosto de 1967, enviou uma carta ao poeta riverense Carlos Berruti, em que afirma que o chefe do Arquivo dos Tribunais de Dolores, César Vilgré La Madrid, enviou-lhe um antigo livro. Tratava-se da biografia de Pablo Vera, "o que peleou com Martín Fierro". Para o historiador, estava extinta "toda dúvida relativa à existência carnal de Martín Fierro".

Para Martín Fierro, não há mais resistência. Mas não restou documentação da presença de Hernández nas ruas de Livramento. Dúvidas são saudáveis para a preservação da verdade. Mas poucas pessoas de bom senso poderiam refutar o fato de que o poeta habitou a cidade. Nesse lapso, quase seguramente, ele começou a escrever o poema mais célebre da letras argentinas, em que pesem as ressalvas ao estilo e à qualidade lírica. Já avisava Martín Fierro no canto 1.192: "É a memória de um grande dom / qualidade meritória, / e aqueles que nesta história / suspeitem que lhes dou pau, / saibam que esquecer o mau / também é se ter memórias." (Ricardo Carle, Especial/ZH)


quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Das charges para a boca do povo: Como surgiu a expressão "Amigo da Onça"?

O "Amigo da Onça" foi um personagem criado pelo cartunista pernambucano Péricles de Andrade Maranhão e publicado pela primeira vez há 69 anos, em 23 de outubro de 1943, em uma charge na revista "O Cruzeiro".


Ele nasceu por sugestão do então diretor da revista, Leão Gondim de Oliveira, fã do personagem "El enemigo del Hombre" (O Inimigo do Homem), criado pelo argentino Guillermo Divito (Revista Patoruzú). Gondim queria um tipo bem carioca, esperto, que sempre leva a melhor sobre os outros.


Para compor o tipo físico do personagem, o chargista se inspirou em um garçom muito chato do bar onde esboçava suas piadas, que sempre se aproximava para saber o que ele estava fazendo. Ao descobrir que ele vivia disso, comentou: "Puxa, eu queria ter esse vidão!".


O nome do personagem, que acabou virando sinônimo de amigo falso, que vive colocando os outros em situações perigosas ou embaraçosas, foi tirado de uma piada que fazia muito sucesso na época:

Dois caçadores conversam no acampamento:
— O que você faria se estivesse agora na selva e uma onça aparecesse na sua frente?
— Ora, dava um tiro nela.
— Mas se você não tivesse nenhuma arma de fogo?
— Bom, então eu matava ela com meu facão.
— E se você estivesse sem o facão?
— Apanhava um pedaço de pau.
— E se não tivesse nenhum pedaço de pau?
— Subia na árvore mais próxima!
— E se não tivesse nenhuma árvore?
— Saía correndo.
— E se você estivesse paralisado pelo medo?

Então, o outro, já irritado, retruca:
— Mas, afinal, você é meu amigo ou amigo da onça?

sábado, 19 de outubro de 2013

Poesia de Vinicius de Moraes


" A esse mundo, só a poesia poderá salvar ..."



O Poeta
  
A vida do poeta tem um ritmo diferente
É um contínuo de dor angustiante.
O poeta é o destinado do sofrimento
Do sofrimento que lhe clareia a visão de beleza
E a sua alma é uma parcela do infinito distante
O infinito que ninguém sonda e ninguém compreende.
  
Ele é o eterno errante dos caminhos
Que vai, pisando a terra e olhando o céu
Preso pelos extremos intangíveis
Clareando como um raio de sol a paisagem da vida.
O poeta tem o coração claro das aves
E a sensibilidade das crianças.
O poeta chora
Chora de manso, com lágrimas doces, com lágrimas tristes
Olhando o espaço imenso da sua alma.
O poeta sorri
Sorri à vida e à beleza e à amizade
Sorri com a sua mocidade a todas as mulheres que passam.
  
O poeta é bom.
Ele ama as mulheres castas e as mulheres impuras
Sua alma as compreende na luz e na lama
Ele é cheio de amor para as coisas da vida
E é cheio de respeito para as coisas da morte.
O poeta não teme a morte.
Seu espírito penetra a sua visão silenciosa
E a sua alma de artista possui-a cheia de um novo mistério.
a sua poesia é a razão da sua existência
Ela o faz puro e grande e nobre
E o consola da dor e o consola da angústia.
A vida do poeta tem um ritmo diferente
Ela o conduz errante pelos caminhos, pisando a terra e olhando o céu

Preso, eternamente preso pelos extremos intangíveis.


 Ausência
  
Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei ... tu irás e encostarás a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada
  
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu,
porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos.
Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

(In : Forma e exegese - PC e P., p. 99)

 Ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.
(Novos poemas - PC e P,  p.155-156)



Soneto do amor total

Amo-te tanto, meu amor.. não cante
O humano coração com mais verdade ...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade

Amo-te afim, de um calmo amor prestante,
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente,
De um amor sem mistério e sem virtude
com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim muito a amiúde,
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.
(Rio, 1951 - P. 336)


Soneto do maior amor


Maior amor nem mais estranho existe
Que o meu, que não sossega a coisa amada
E quando a sente alegre, fica triste
E se a vê descontente, dá risada.

E que só fica em paz se lhe resiste
O amado coração, e que se agrada
Mais da eterna aventura em que persiste
Que de uma vida malaventurada.

Louco amor meu, que quando toca, fere
E quando fere vibra, mas prefere
Ferir a fenecer - e vive a esmo

Fiel à sua lei de cada instante
Desassombrado, doido, delirante
Numa paixão de tudo e de si mesmo.

Oxford, 1938
(Poemas, Sonetos e Baladas - PC e P., p. 202)


Soneto de fidelidade


De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Que vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

(Poemas, Sonetos e Baladas - PC e P.,  p. 183)



terça-feira, 10 de setembro de 2013

Traços estilísticos de Ferreira Gullar (10/09/1930 - ) em "Poema sujo"

por Diogo Andrade de Macedo


Toda obra literária autêntica revela o poder de expressão de seu autor. Essa capacidade de transformar em linguagem a experiência interior requer, por parte do artista, sensibilidade para reconhecer a inseparável relação entre esse universo íntimo, de onde brota a verve, a habilidade pessoal de transmutar em linguagem esse magma disperso, e a experiência exterior, que servirá como alimento permanente desse fluxo de vida capaz de fazer do poeta um moinho a gerar sempre novos significados em sua relação com o mundo. É bem verdade que situações históricas relevantes foram imortalizadas em grandes obras por artistas que sabiam, como o poeta Ferreira Gullar, com o Poema Sujo, exprimir com mestria os sentimentos que a realidade suscita no homem sensível, sempre alerta e consciente de sua participação como ser social.

Publicado em 1976, Poema Sujo é considerada a obra mais ousada de Ferreira Gullar. Produzido no exílio, em Buenos Aires, surgiu da necessidade de, como ele mesmo afirmou, "escrever um poema que fosse o meu testemunho final, antes que me calassem para sempre". Numa época de forte repressão política, Gullar sentia-se acossado pela ânsia de rememorar o passado e a dificuldade de expressar, em linguagem poética, o universo interior, o que transparece, logo nos primeiros versos, no nível formal do texto:
turvo turvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
escuro
menos menos
menos que escuro
menos que mole e duro menos que fosso e muro: [menos que furo
escuro
mais que escuro:
claro
como água? Como pluma? Claro mais que claro claro: coisa alguma
e tudo
(ou quase)
um bicho que o universo fabrica e vem sonhando [desde as entranhas
Há, nessa passagem, o uso consciente de vogais e consoantes que sugerem um conflito entre o desejo pela expressão exata e a impossibilidade de transpor para o verso as impressões da vida real. Esse embate repercute na utilização das consoantes oclusivas [t] e [p], que reproduzem sons fortes e pesados, mostrando que o poema começa a se revelar, mas ainda se acha à mercê dos óbices de transformar em linguagem poética a experiência profunda, armazenada como sentimentos, emoções e recordações. Por outro lado, as vogais [o] e [u] também causam a sensação de fechamento e escuridão, sem mencionar que a palavra muro realça esse labor com a linguagem.

Logo em seguida aparecem outros recursos estilísticos que demonstram a superação das primeiras barreiras. O jogo de antíteses (escuro x claro, menos x mais, mole x duro) reforça uma ambigüidade: ora a imagem emerge espontânea, ora se esconde no pensamento. No primeiro caso, brotam do interior como uma explosão, ou seja, "como um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas". No entanto, em certo momento, os versos fluem com mais nitidez e as palavras revelam imagens mais consistentes:
Claro claro
Mais que claro
Raro
O relâmpago clareia os continentes passados
Em razão de uma originalidade sempre buscada (Gullar, de certa forma, antecipou o Movimento Concretista, de 1956, com os poemas do final do livro A Luta Corporal, de 1954), no Poema Sujo ele se esmera na coragem despudorada de revelar explicitamente a sordidez e a impureza do cotidiano humano em passagens insólitas, não raro pungentes, embora amparadas por uma consciência poética que torna esses rompantes expressivos alheios a um simples e pueril desejo de subverter ou chocar. Em alguns momentos, o poeta declara abertamente,
tua gengiva igual a tua bocetinha que parecia sorrir entre [as folhas de
banana entre os cheiros de flor e bosta de porco aberta [como uma boca
do corpo (não como a tua boca de palavras) como uma [entrada para

acentuando uma fixação pelo corpo que se torna o instrumento essencial na interpretação do mundo. Um dos elementos que comprova o vigor poético do livro são as referências ao corpo, escritas numa linguagem prosaica e explosiva, como o que habilita o homem a conviver e explorar, simultaneamente, o mundo da cidade exterior e interior, enriquecendo a obra pela tensão causada pela conciliação de contrários. A matéria corporal contém, por associação ou comparação, os significados do mundo exterior. Assim, inscreve-se no corpo do poeta o que existe no mundo concreto:
e os carinhos mais doces mais sacanas
mais sentidos
para explodir como uma galáxia
de leite
no centro de tuas coxas no fundo
de tua noite ávida
cheiros de umbigo e de vagina
graves cheiros indecifráveis
como símbolos
do corpo
do teu corpo do meu corpo
São recorrentes então as relações entre o "corpo" da cidade e o corpo do poeta, aproximação que confirma ser o corpo aquilo que contém todo o mundo exterior e dele participa com autonomia. Essa presença do corpo em todos os acontecimentos é, na verdade, o reconhecimento de uma consciência formada pela junção de elementos reais e imaginários, concretos e abstratos, revelados numa belíssima metáfora:
meu corpo-galáxia aberto a tudo cheio
de tudo como um monturo
de trapos sujos latas velhas colchões usados [sinfonias
sambas e frevos azuis
Assim, o corpo é o elemento intermediário entre o mundo e a consciência do poeta. Noutra passagem, a tentativa de valorização do corpo como elemento salutar na descoberta do mundo ocasiona a busca, gradativa, pela especificação da própria individualidade:
Mas sobretudo meu
corpo
nordestino
mais que isso
maranhense
mais que isso
sanluisense
mais que isso
ferreirense
newtoniense
alzirense
Por outro lado, a ausência de pontuação marca o fluxo associativo do pensamento que, muitas vezes, aproxima imagens logicamente desconexas. Assim, a eliminação da vírgula reflete a correlação entre os elementos mencionados, fundindo-os em blocos de imagens inusitadas. Como nem sempre se pode distinguir o que é memória e o que é fantasia ou imaginação, essas associações insólitas ocorrem com freqüência devido à natureza recordativa da obra. Na seguinte passagem, é evidente a enumeração caótica, conscientemente utilizada para evidenciar o tom febril e vigoroso do seu tempo:
Era a vida a explodir por todas as fendas da [cidade
Sob as sombras da
Guerra:
A gestapo a wehrmacht a raf a feb a blitzkrieg [catalinas torpedea-
mentos a quinta-coluna os fascistas os nazistas os comunistas o repórter esso a discussão na quitanda o querosene o sabão de andiroba o mercado negro o racionamento o blackout as montanhas de metais velhos o italiano assassinado na Praça João Lisboa o cheiro de pólvora os canhões alemães troando nas noites de tempestade por cima da nossa casa. Stalingrado resiste.
É desse modo que o poeta amalgama, numa estrutura dissonante e fragmentária, evocações da infância e da juventude na cidade de São Luís do Maranhão, na tentativa de reviver o passado no presente para, assim, reconstituir um mundo em que a imaginação e a realidade se confundem de modo condensado e comovente. Tendo em vista a multiplicidade de lembranças e associações que ora atualizam o passado, ora relembram o presente, o poeta criou o que alguns críticos denominaram "poema do simultâneo", já que o limite entre a imaginação e a realidade se dissolve e tudo se atualiza em forma de diálogo interior. Nesse sentido, mais uma vez os sinais de pontuação desaparecem em favor de uma técnica moderna de enumeração que transporta para a linguagem o fluxo sempre caótico da mente inconsciente, como na passagem que relembra
constelações de alfabeto
noites escritas a giz
pastilhas de aniversário
domingos de futebol
enterros corsos comícios
roleta bilhar baralho
ou então quando o poeta fixa imagens isoladas que rememoram um mundo primitivo e inocente, evocado pela presença constante do corpo como depósito da experiência vivida:
Mas a poesia não existia ainda
Plantas. Bichos. Cheiros. Roupas.
Olhos. Braços. Seios. Bocas.
Vidraça verde, jasmim.
Bicicleta no domingo.
Papagaios de papel.
Retreta na praça.
Luto.
Homem morto no mercado
sangue humano nos legumes.
Mundo sem voz, coisa opaca.
Mais que isso, essa simultaneidade de imagens e lembranças, capaz de fomentar um diálogo constante entre elementos do tempo e do espaço, tem um objetivo: a superação do tempo pela concretização de tudo aquilo que, cotidiano ou não, garante um olhar mais apurado e crítico da própria existência, daí a impossibilidade de separação entre o que é memória, fluxo de consciência e cronologia. É isso, aliás, que caracteriza a universalidade de Poema Sujo: a transcendência do espaçotempo, fundidos na consciência e eternizados numa linguagem realista e ao mesmo tempo psicológica, lírica e cinematográfica, que aglutina o universo vivido.

Com um realismo quase sempre doloroso, Gullar elabora um dos temas mais caros de sua poética, também presente no Poema Sujo: a fragmentação e a temporalidade das coisas e dos homens, ou seja, a evidente submissão do homem ao tempo, que a tudo destrói impiedosamente. Por exemplo,
Numa coisa que apodrece
--- tomemos um exemplo velho:
uma pêra ---
o tempo
não transcorre nem grita,
antes
se afunda em seu próprio abismo,
se perde
em sua própria vertigem,
mas tão sem velocidade
que em lugar de virar luz vira
escuridão;
A intertextualidade é evidente, nesta passagem, com o poema As peras, de A Luta Corporal:
As peras, no prato,
apodrecem.
O relógio, sobre elas,
mede
a sua morte?
Paremos a pêndula. De-
teríamos, assim, a
morte das frutas
Oh as peras cansaram-se
de suas formas e de
sua doçura ! As peras,
concluídas, gastam-se no
fulgor de estarem prontas
para nada.
O relógio
não mede. Trabalha
no vazio: sua voz desliza
fora dos corpos.
(…)
Além disso, o isolamento deliberado de algumas palavras realça e concretiza cada uma delas, criando assim novos níveis de significação vocabular. Em alguns trechos, o autor se vale de recordações da infância em passagens que se assemelham a jogos infantis, verdadeiros momentos lúdicos em que a assimetria do texto acompanha a espontaneidade sempre presente nesses jogos, destituídos de qualquer rigor coercitivo:
café com pão
bolacha não
café com pão
vale quem tem
vale quem tem
vale quem tem
vale quem tem
nada vale
quem não tem
nada não vale
nada vale
quem nada
tem
neste vale
Percebe-se que o poeta distribui as palavras de acordo com o movimento melódico do verso, subtraindo as formas tradicionais de versificação. Por isso, as onomatopéias, recorrentes na obra, causam estranheza ao leitor desavisado, que se surpreende com certas reproduções auditivas, como
tarã TARÃ TARÃ TARÃ
tchi tchi tchi tchi tchi
TARÃ TARÃ TARÃ TARÃ
Lá vai o trem com o menino
Lá vai a vida a rodar
(…)
VAARÃ VAARÃ VAARÃ VAARÃ
tuc tchuc tuc tchuc tuc tchuc
IUÍ IUÍ IUÍ IUÍ IUÍ
tuc tchuc tuc tchuc tuc tchuc
lará lará larará
lará lará larará
lará lará larará lará lará larará
Esses recursos auditivos transmitem o despojamento de uma consciência poética atenta ao aspecto intuitivo, àquilo que não é pensado, mas sentido e, por isso, alheio a regras gramaticais. É a ousadia de reconhecer o valor imaginativo das associações sonoras porque, no Poema Sujo, nada é proibido, tanto que as lembrancimagens refletem o processo de simultaneidade responsável, em muito, pelo caráter polissêmico do livro. Há quem reconheça a obra como um "poema da memória", embora não haja uma visão idealizada de sua cidade, nem a fuga em reconhecer que a miséria se esconde tanto nas relações sociais e políticas no interior do homem moderno, angustiado pelo eterno descompasso entre a realidade e o sonho que, embora suavize o sofrimento, ainda esconde, de certa forma, o real circundante. Esse descompasso se camufla em comparações que denunciam as correspondências entre as coisas e os homens, ou seja, uma coisa, de certa forma, está em outra:
O homem está na cidade
como uma coisa está em outra
e a cidade está no homem
que está em outra cidade.

mas variados são os modos
como uma coisa
está em outra coisa:
o homem, por exemplo, não está na cidade
nem como uma árvore
está em qualquer uma de suas folhas

Assim, a vida vige no interior de cada objeto e de cada homem, emergindo, no poema, em imagens comparativas que tentam superar a dificuldade de esclarecimento tanto da linguagem quanto do sentido da existência humana. Por exemplo, no trecho
Nalgum ponto do corpo (do teu? do meu
corpo ?)
lampeja
o jasmim
o isolamento de lampeja acentua o poder de significação desse vocábulo que se mostra, assim, marcado pela sensação do descobrimento abrupto de um enigma.

Como bem afirmou o crítico Otto Maria Carpeaux, o Poema Sujo mereceria ser chamado de poema nacional, porque "encarna todas as experiências , vitórias, derrotas e esperanças da vida do homem brasileiro". É necessário, então, reconhecer Ferreira Gullar como um autêntico poeta que permeia o poema com o tom lírico humanizador vazado numa melodia que, como ele mesmo dizia, é capaz de "encontrar a expressão universal da coisa particular".

A força poética da obra gullardiana reside, portanto, na qualidade das sugestões psicológicas, no emprego inusitado da palavra e na capacidade de, como o próprio autor afirma, "explodir a linguagem" em versos que marcaram, pela singularidade, os rumos da criação poética brasileira. Isso sem mencionar a dignidade e sinceridade com que assume a dureza da existência humana e a transfigura em poemas que evocam não apenas o universo paradisíaco da infância, mas também inscrevem um novo sentido ético, que seguramente nos torna mais conscientes dos mistérios de existir num mundo que, como diz Gullar, "espanta e comove".


Referências Bibliográficas

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 37 ed. São Paulo: Cultrix, 1994.

BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. O espírito e a letra. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1996, v. 1.

FERREIRA DE LOANDA, Fernando. Antologia da nova poesia brasileira. Lisboa: Orpheu, 1967.

GULLAR, Ferreira. Poema Sujo. 7 ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1995.

RODRIGUES, Antônio Medina. Antologia da literatura brasileira. 7 ed. São Paulo: Marco, 1987.


sábado, 24 de agosto de 2013

24 de Agosto: Aniversário de Jorge Luis Borges e de Paulo Coelho


Em 1988, Paulo Coelho publicou seu livro de maior sucesso, O Alquimista. Você sabia que a trama desde livro está inspirada no conto História dos Dois Que Sonharam, do escritor argentino Jorge Luis Borges?
O Alquimista chegou ao primeiro lugar da lista dos mais vendidos em 18 países. É o livro brasileiro mais vendido da história, com mais de 10 milhões de exemplares comercializados. O Alquimista foi inclusive adotado em escolas da Europa e dos Estados Unidos. A obra foi adaptada para o teatro em diversos países e inspirou o compositor Walter Taieb a lançar o disco A Sinfonia do Alquimista.

HISTÓRIA DOS DOIS QUE SONHARAM
Jorge Luis Borges

O historiador árabe El Ixaqui narra este acontecimento:

Contam os homens dignos de fé (porém somente Alá é onisciente e poderoso e misericordioso e não dorme) que existiu no Cairo um homem possuidor de riquezas, porém tão magnífico e liberal que perdeu-as todas, menos a casa de seu pai. Diante disso, viu-se forçado a trabalhar para ganhar seu pão.

Trabalhou tanto que o sono venceu-o uma noite sob uma figueira de seu jardim, e ele viu no sonho um homem empanturrado que tirou da boca uma moeda de ouro e lhe disse: "Tua fortuna está na Pérsia, em Isfahan, vai buscá-la".

Na madrugada seguinte acordou e empreendeu a longa viagem, afrontando os perigos dos desertos, dos navios, dos piratas, dos idólatras, dos rios, das feras e dos homens. Chegou finalmente a Isfahan, e no centro da cidade, no pátio de uma mesquita, deitou-se para dormir.

Junto à mesquita havia uma casa, e, por vontade de Deus Todo-Poderoso, um bando de ladrões atravessou a mesquita, e meteu-se na casa, e as pessoas que ali dormiam, desesperando com o barulho, pediram socorro. Os vizinhos também gritaram, até que o capitão dos guardas-noturnos daquele distrito acudiu com seus homens e os bandoleiros fugiram pelo terraço. O capitão quis revistar a mesquita e lá deram com o homem do Cairo; açoitaram-no de tal maneira com varas de bambu que ele quase morreu.

Dois dias depois recobrou os sentidos na cadeia. O capitão mandou buscá-lo e disse: "Quem és tu e qual tua pátria?" O outro declarou: "Sou da famosa cidade do Cairo e meu nome é Mohamed el Magrebi". O capitão perguntou-lhe: "O que te trouxe à Pérsia?" O outro optou pela verdade e disse: "Um homem ordenou-me, em sonho, que eu viesse a Isfahan porque aí estava a minha fortuna. Já estou em Isfahan e vejo que essa fortuna que me prometeu devem ser as vergastadas que tão generosamente me deste".

Diante de tais palavras o capitão riu tanto que se viam seus dentes do siso e, finalmente, lhe disse: "Homem desajuizado e crédulo, eu já sonhei três vezes com uma casa no Cairo no fundo da qual há um jardim, e nesse jardim um relógio de sol, e depois do relógio uma figueira, e logo depois da figueira uma fonte e sob a fonte um tesouro. Não dei o menor crédito a essa mentira e tu, produto de uma mula com um demônio, não obstante vens errando de cidade em cidade baseado unicamente na fé de teu sonho. Que eu não volte a ver-te em Isfahan. Toma estas moedas e desaparece."

O homem pegou as moedas e regressou a sua pátria. Sob a fonte do seu jardim (que era a mesma do sonho do capitão) desenterrou o tesouro. Assim Deus lhe deu a bênção, recompensou-o e enalteceu-o. Deus é o Generoso, o Oculto.

(Do Livro das 1001 Noites, noite 351)



HISTORIA DE LOS DOS QUE SOÑARON
Jorge Luis Borges

El historiador arábigo El Ixaquí refiere este suceso:

Cuentan los hombres dignos de fe (pero sólo Alá es omnisciente y poderoso y misericordioso y no duerme), que hubo en el Cairo un hombre poseedor de riquezas, pero tan magnánimo y liberal que todas las perdió menos la casa de su padre, y que se vio forzado a trabajar para ganarse el pan.

Trabajó tanto que el sueño lo rindió una noche debajo de una higuera de su jardín y vio en el sueño un hombre empapado que se sacó de la boca una moneda de oro y le dijo: “Tu fortuna está en Persia, en Isfaján; vete a buscarla.”

A la madrugada siguiente se despertó y emprendió el largo viaje y afrontó los peligros de los desiertos, de las naves, de los piratas, de los idólatras, de los ríos, de las fieras y de los hombres. Llegó el fin a Isfaján, pero en el recinto de esa ciudad lo sorprendió la noche y se tendió a dormir en el patio de una mezquita.

Había, junto a la mezquita, una casa y por el Decreto de Dios Todopoderoso, una pandilla de ladrones atravesó la mezquita y se metió en la casa, y las personas que dormían se despertaron con el estruendo de los ladrones y pidieron socorro. Los vecinos también gritaron, hasta que el capitán de los serenos de aquel distrito acudió con sus hombres y los bandoleros huyeron por la azotea. El capitán hizo registrar la mezquita y en ella dieron con el hombre de El Cairo, y le menudearon tales azotes con varas de bambú que estuvo cerca de la muerte.

A los dos días recobró el sentido en la cárcel. El capitán lo mandó buscar y le dijo: “¿Quién eres y cuál es tu patria?". El otro declaró: “Soy de la ciudad famosa de El Cairo y mi nombre es Mohamed El Magrebí.” El capitán le preguntó: “¿Qué te trajo a Persia?”. El otro optó por la verdad y le dijo: “Un hombre me ordenó en un sueño que viniera a Isfaján, porque ahí estaba mi fortuna. Ya estoy en Isfaján y veo que esa fortuna que prometió deben ser los azotes que tan generosamente me diste”.

Ante semejantes palabras, el capitán se rió hasta descubrir las muelas del juicio y acabó por decirle: “Hombre desatinado y crédulo, tres veces he soñado con una casa en la ciudad de El Cairo en cuyo fondo hay un jardín, y en el jardín un reloj de sol y después del reloj de sol una higuera y luego de la higuera una fuente, y bajo la fuente un tesoro. No he dado el menor crédito a esa mentira. Tú, sin embargo, engendro de una mula con un demonio, has ido errando de ciudad en ciudad, bajo la sola fe de tu sueño. Que no te vuelva a ver en Isfaján. Toma estas monedas y vete”.

El hombre las tomó y regresó a la patria. Debajo de la fuente de su jardín (que era la del sueño del capitán) desenterró el tesoro. Así Dios le dio bendición y lo recompensó y exaltó. Dios es el Generoso, el Oculto.

(Del Libro de las 1001 Noches, noche 351)


Este cuento de Borges forma parte de la 2a. edición del libro "Historia universal de la infamia", colección de historias cortas escritas por Jorge Luis Borges, publicada por primera vez en 1935 en la colección Megáfono de Editorial Tor (Buenos Aires), y cuya edición revisada por el autor se vuelve a publicar en 1954 en la editorial Emecé de Buenos Aires. Ya había sido publicado por separado en el Diario Crítica, el 23/6/1934. Borges señala al final del cuento que se trata de una traducción de la noche 351 del "Libro de las 1001 Noches."