segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Érico Veríssimo (17/12/1905 - 28/11/1975): Sonata


Sonata
A história que vou contar não tem a rigor um princípio, um meio e um fim. O Tempo é um rio sem nascentes a correr incessantemente para a Eternidade, mas bem se pode dar que em inesperados trechos de seu curso o nosso barco se afaste da correnteza, derivando para algum braço morto feito de antigas águas ficadas, e só Deus sabe o que então nos poderá acontecer. No entanto, para facilitar a narrativa, vamos supor que tudo tenha começado naquela tarde de abril.
Era o primeiro ano da Guerra e eu evitava ler os jornais ou dar ouvidos às pessoas que falavam em combates, bombardeios e movimentos de tropas.
"Os alemães romperão facilmente a Linha Maginot" assegurou-me um dia o desconhecido que se sentara a meu lado num banco de praça. "Em poucas semanas estarão senhores de Paris." Sacudi a cabeça e repliquei: "Impossível. Paris não é uma cidade do espaço, mas do tempo. É um estado de alma e como tal inacessível às Panzerdivisionen." O homem lançou-me um olhar enviesado, misto de estranheza e alarma. Ora, estou habituado a ser olhado desse modo. Um lunático! É o que murmuram de mim os inquilinos da casa de cômodos onde tenho um quarto alugado, com direito à mesa parca e ao banheiro coletivo.
E é natural que pensem assim. Sou um sujeito um tanto esquisito, um tímido, um solitário que às vezes passa horas inteiras a conversar consigo mesmo em voz alta. "Bicho-de-concha!" — já disseram de mim. Sim, mas a essa apagada ostra não resta nem o consolo de ter produzido em sua solidão alguma pérola rara, a não ser... Mas não devo antecipar nem julgar.
Homem de necessidades modestas, o que ganho, dando lições de piano a domicílio, basta para o meu sustento e ainda me permite comprar discos de gramofone e ir de vez em quando a concertos. Quase todas as noises, depois de vaguear sozinho pelas ruas, recolho-me ao quarto, ponho a eletrola a funcionar e, estendido na cama, cerro os olhos e fico a escutar os últimos quartetos de Beethoven, tentando descobrir o que teria querido dizer o Velho com esta ou aquela frase.
Tenho no quarto um piano no qual costumo tocar as minhas próprias composições, que nunca tive a coragem nem a necessidade de mostrar a ninguém. Disse um poeta que
Entre a ideia
E a realidade
Entre o movimento
E o ato

Cai a Sombra.
Pois entre essa Sombra e a mal-entrevista claridade duma esperança vivia eu, aparentemente sem outra ambição que a de manter a paz e a solitude.
No Inverno, na Primavera e no Verão sinto-me como que exilado, só encontrando o meu clima nativo, o meu reino e o meu nicho no Outono — a estação que envolve as pessoas e as coisas numa surdina lilás. É como se Deus armasse e iluminasse o palco do mundo especialmente para seus mistérios prediletos, de modo que a qualquer minuto um milagre pode acontecer.
Naquele dia de abril andava eu pelas ruas numa espécie de sonambulismo, com a impressão de que o Outono era uma opala dentro da qual estava embutida a minha cidade com as suas gentes, casas, ruas, parques e monumentos, bem como esses navios de vidrilhos coloridos que os presidiários constroem pacientemente, pedacinho a pedacinho, dentro de garrafas. Veio-me então o desejo de compor uma sonata para a tarde.
Comecei com um andantino serenamente melancólico e brinquei com ele durante duas quadras, com a atenção dividida entre a música e o mundo. De súbito as mãos sardentas dum de meus alunos puseram-se a tocar escalas dentro de meu crânio com uma violência atroz, e lá se foi o andantino…
Fiquei a pensar contrariado nas lições que tinha de dar no dia seguinte. Ah! A monotonia dos exercícios, a obtusidade da maioria dos discípulos, a incompreensão e a impertinência dos pais! Devo confessar que não gostava da minha profissão e que, se não a abandonava, era porque não saberia fazer outra coisa para ganhar a vida, pois repugnava-me a ideia de tocar músicas vulgares nessas casas públicas onde se dança, come e bebe à noite.
Quando o andantino me voltou à mente, fiquei a seguir suas notas como quem observa crianças a brincarem de roda num jardim. De repente um ruído medonho e rechinante trincou de cima a baixo o vidro de meu devaneio, ao mesmo tempo que alguém me puxava violentamente para trás. Ora, não tenho nenhum instinto de conservação. Dizem que Shelley também era assim. Talvez seja uma pretensão absurda estar eu aqui a comparar-me com o poeta. Mas a verdade é que não tenho.
Levei um bom par de segundos para compreender que quase ficara debaixo das rodas dum ônibus, e que um transeunte desconhecido me salvara a vida. Balbuciei um agradecimento para o homem que ainda me segurava o braço, mas o que me impressionava mesmo no momento era a expressão de fúria do chofer que gritava: "Não enxerga, animal?"
Como era possível alguém encolerizar-se e dizer grosserias numa tarde de Outono? O ônibus retomou a marcha. O meu salvador perdeu-se na multidão.
Percebi então que estava à frente do edifício da Biblioteca Pública. O casarão pardo e severo tinha um ar tão convidativo e protetor que, sem saber exatamente por que, resolvi entrar. Atravessei o saguão de mármore, penetrei na sala de leitura e aproximei-me do funcionário a quem hoje chamo Confúcio por motivos que em breve ficarão suficientemente claros. Éramos já velhos conhecidos, pois eu costumava ir com alguma freqüência à Biblioteca.
O homem ergueu os olhos e perguntou: "Que deseja o amigo?" A minha indecisão tomou a forma dum sorriso. Podia pedir um livro de poemas ou algum ensaio sobre Mozart; no entanto, surpreendi-me a dizer:
— Quero ver uns jornais velhos.
— Que jornais?
Mencionei o nome do mais antigo matutino da cidade.
— E as datas?
— 1912.
Era o ano de meu nascimento.
O funcionário afastou-se, tornou pouco depois com dois grandes volumes encadernados debaixo do braço e depô-los sobre a mesa junto da qual eu me sentara.Comecei a folhear distraidamente os jornais, achando um sabor nostálgico nos anúncios de cinema e teatro, nas notícias da coluna social e principalmente nas apagadas reproduções de fotografias em que homens e mulheres apareciam com as roupas da época. No exemplar cuja data correspondia exatamente à daquele dia de abril, encontrei na página dos "Precisa-se" um anúncio que me chamou a atenção:
PROFESSOR DE PIANO. Precisa-se dum professor de piano, pessoa de bons costumes, para lecionar moça de família já com quatro anos de estudo. Tratar à Rua do Salgueiro n° 25 (é uma casa antiga, com um anjo triste no jardim).
Não pude deixar de sorrir. O funcionário aproximou-se.
— Que foi que o amigo descobriu de tão interessante? Mostrei-lhe o anúncio. Ele acavalou os óculos no nariz, inclinou-se sobre a mesa e leu.
— Escute… — murmurei. — Há vinte e oito anos numa casa da Rua do Salgueiro uma mocinha esperava o seu professor de piano. Será que ele apareceu? Qual teria sido o destino dessa moça?
O funcionário encolheu os ombros.
— Decerto engordou, envelheceu, ficou avó... Ou morreu.

— Não seja tão pessimista. Imagine outra coisa: o tempo não passou e a mocinha ainda lá está esperando…
— Imagine então que eu nasci na China há muitos séculos e me chamo Confúcio.
— E por que não?
O funcionário soltou uma risada, mas em surdina, como convinha ao lugar e à hora. Apanhei o chapéu e saí. As frases do anúncio soavam-me na cabeça como a melodia pueril duma caixinha de música. Descobri que a Rua do Salgueiro, aonde cheguei ao cair da tarde, tinha agora o nome dum caudilho de três revoluções e ficava num desses distritos assolados pelo último plano de urbanização. As vivendas antigas haviam sido derrubadas para dar lugar a modernos prédios de apartamentos. Não avistei nenhum salgueiro nem nada que pudesse sequer sugerir a possibilidade da sobrevivência duma casa como a do anúncio.
Saí a caminhar lentamente ao ritmo de meus pensamentos, de novo concentrado no andantino. A trovoada do tráfego havia-se amortecido de tal forma, que já agora não passava dum zumbido distante. Os lampiões estavam apagados ao longo das calçadas inexplicavelmente desertas. Eu não ouvia mais nem o ruído de meus próprios passos: era como se caminhasse pisando em paina.
A rua estava tocada duma névoa leitosa de cambiantes arroxeados, que parecia deformar todas as imagens, e eu tinha a impressão de estar no fundo do oceano como um escafandrista desmemoriado que já não sabe mais por que desceu às profundezas.
Quando dei acordo de mim, estava parado diante dum velho portão de ferro em cujo frontão se via uma placa com o número 25. Espiei por entre suas grades e avistei, no fundo dum jardim apertado entre duas enormes casas de apartamentos, uma vivenda colonial de fachada caiada e janelas azuis. A poucos passos da sua porta central, debaixo duma paineira florida, cismava um anjo de bronze, sentado numa pedra na atitude do Penseur de Rodin. O anjo triste!
Veio-me então um contentamento indescritível, uma espécie de orgulho por verificar que ainda havia no mundo alguém que prezava o passado e resistia à tentação do lucro, recusando-se a vender aquela propriedade aos insaciáveis construtores de arranha-céus. Abri o portão, atravessei o jardim crepuscular, acariciei a cabeça azinhavrada do anjo, aproximei-me da porta e bati. Meu coração pulsava um pouco descompassado. Por que fazia eu aquilo? Com que direito? Com que propósito? Que dizer se alguém viesse abrir a porta?
Tomado dum repentino temor, ia fazer meia volta e fugir quando a porta se abriu e na penumbra dum corredor divisei um vulto de mulher. Uma voz neutra chegou-me aos ouvidos:
— Que é que o senhor deseja?
A resposta que me ocorreu na confusão do momento pareceu-me então insensata, mas sei agora que era a mais certa, a mais natural, a única.
— É aqui que estão precisando dum professor de piano ?
Houve da parte da mulher uma breve hesitação.

— É aqui mesmo. Tenha a bondade de entrar, que vou avisar a patroa.
Fez-me passar para uma sala alumiada pela luz dum lampião em cuja esfera de vidro branco e fosco estava pintada uma borboleta amarela entre dois ramilhetes de flores. Olhei em torno: uma dessas salas de visitas muito em voga na última década no século passado, com sua mobília de jacarandá lavrado e estofo cor de vinho, o sofá e as cadeiras com rodinhas nos pés. Negrejava a um canto o piano, em cima do qual se alinhavam bibelôs sobre guardanapos de croché. Viam-se pelas paredes quadros com retratos de gente de antanho.
Aquecia aquela atmosfera uma intimidade tão acolhedora, uma tal sugestão de aconchego humano, que pela primeira vez em toda a minha vida me senti completamente de acordo com um ambiente. Fiquei tão absorto na fruição daquele lugar e daquele momento, que nem dei pela entrada da dona da casa.
— Boa noite — disse ela. — O senhor então é professor de piano?
A sua voz, como a sua fisionomia, era uma curiosa combinação de doçura e determinação. Apertei a mão que me estendia. Ela me indicou uma cadeira. Sentei-me e só então notei que tinha diante de mim uma dama grisalha vestida exatamente como minha mãe naquele retrato, tirado em princípios de 1913, que lá está no meu álbum de família: blusa branca de gola alta e rendada, cintura muito fina, saia escura e afunilada, com a barra quase a tocar o soalho. O seu penteado lembrava-me o das figuras femininas do desenhista Gibson que apareciam nas ilustrações das revistas de minha infância.
— Como se chama o senhor?
Disse-lhe o meu nome.
— Que idade tem?

— Vinte e oito anos.
— Só? Esperava um mestre mais idoso…
— Se a senhora prefere que eu envelheça — sorri — posso ir embora e voltar daqui a vinte anos…
Ela soltou uma sonora risada e eu temi que as suas vibrações quebrassem o sortilégio.
Sim, porque eu sentia que algo de maravilhoso me estava acontecendo, eu não compreendia por que nem como. Só sabia que tinha encontrado um lar, um abrigo.
O rosto da dona da casa de novo se fez sério.— Vou ser-lhe muito sincera, como é meu hábito. Sou viúva, vivo sozinha neste casarão com minha filha e estou em completo desacordo com certas liberdades da vida moderna. O senhor já leu a respeito dos despautérios dessas tais sufragistas?
Sacudi a cabeça afirmativamente.
— Pois para mim — prosseguiu ela — a mulher foi feita para o lar e não para votar e andar vestida como os homens. Minha filha é uma moça educada à maneira antiga. É por essa razão que procuro para ela um professor respeitável e respeitador. Por falar nisso, o senhor traz algum atestado ou carta de recomendação?

— Aqui comigo, não. Mas se faz questão, posso trazer outro dia.
— Traga. Agora vamos a outro assunto. Qual é o seu preço?
— A senhora diga. . .
— Pagávamos vinte por mês para o último professor. Vinha duas vezes por semana.
— Pois vinte fica muito bem.

— Quando pode começar?
— Vamos ver… — murmurei, tirando do bolso a caneta e o caderno de notas.
— Que dia é amanhã?
— Vinte e nove.
— De abril?
— Claro.
Senti o coração desfalecer quando perguntei:
— De que ano?
A dama franziu a testa.
— Ora essa! Será que não sabe que já estamos em 1912?
— Desculpe. Sou um pouco distraído.
— Pois não aprecio nada as pessoas distraídas. E, se permite uma observação de caráter pessoal, não gosto do jeito extravagante como o senhor se traja. O caráter dum homem revela-se na maneira como ele anda vestido.
Por alguns instantes os seus olhos escuros fitaram-me com uma intensidade não de todo destituída de simpatia.
— Bem. A sua fisionomia inspira-me confiança. Depois, não se trata de casamento. Se eu achar que o senhor não serve, hei de dizer-lhe com franqueza. Mas vamos ver que horas e dias tem livres.
Fiquei a examinar o meu horário, sem entretanto compreender o que ele dizia, pois os seus nomes, dias e horas falavam dum mundo e dum tempo que eu não amava e que já agora para mim estavam mortos e quase esquecidos. Como a indecisão se prolongasse, a dona da casa socorreu-me com uma sugestão. Não podia eu dar as lições às terças e quintas, das cinco às seis da tarde?
— Perfeito! — exclamei automaticamente.
Houve um curto silêncio ao cabo do qual ela gritou: "Adriana!"
Adriana entrou na sala toda vestida de branco. Teria quando muito vinte anos e parecia-se — senti logo! — com a misteriosa imagem de mulher que costumava visitar os meus sonhos, e cujo rosto eu jamais conseguira ver com clareza.
A presença dessa estranha aparição fazia-se sentir ora corporificada numa branca silhueta feminina, ora na forma duma melodia que em vão eu tentava capturar. Em mais dum sonho andei a perseguir aquele fantasma através de montanhas, prados, florestas e águas. Agora ele ali estava diante de mim, ao alcance de minha mão.
A luz do lampião batia em cheio no rosto de Adriana. E quando ela me mirou com seus olhos dum verde úmido de alga, o escafandrista finalmente compreendeu por que havia descido às profundezas do mar.
E a alegria do descobrimento transformou-se em música em meu espírito. Era uma frase larga, clara e impetuosa como um voo de pássaro ou como uma frecha de prata lançada contra a lua. Essa melodia acompanhou-me quando deixei a casa do anjo triste e atravessei o jardim murmurando: "O que aconteceu é impossível, portanto não preciso dar explicações a ninguém nem a mim mesmo. Basta que eu acredite. E eu acredito, ó meu Deus, como acredito!"
Num doce estonteamento saí a caminhar pelas ruas. A noite havia caído por completo. Bondes passavam ribombando, automóveis com pupilas de fogo rodavam sobre o asfalto, vitrinas lançavam sobre as calçadas cheias de transeuntes sua lívida luz fluorescente, e eu caminhava por entre aquelas criaturas, ruídos e clarões carregando meu sonho com o trêmulo e assustado cuidado de quem leva nas mãos um cristal raro e frágil, que ao menor toque se pode partir. Apressei o passo e refugiei-me no quarto, para melhor proteger as minhas lembranças contra a brutalidade da noite metropolitana.
Sentei-me ao piano e comecei a desenvolver o tema sugerido pela presença de Adriana. Esqueci o abismo, a sombra, o tempo e o mundo. O dia começava a clarear quando terminei de transportar para a pauta o primeiro movimento duma sonata.
Atirei-me na cama tão extenuado, que dormi imediatamente. Quando despertei, o sol estava já no zênite. Vieram-me à mente os acontecimentos do dia anterior e eu disse para mim mesmo. "Foi tudo um sonho."
Mas não! Encontrei sobre o peito o papel pautado com o primeiro movimento da sonata. Saltei da cama e apanhei o caderno de notas, abri-o e li: "Terças e quintas, lições para Adriana, Rua do Salgueiro, 25. Das 5 às 6". Hoje é terça! — descobri com alegria. Barbeei-me com uma pressa nervosa, vesti-me e saí.
Na escada encontrei a senhoria, que me censurou: "Os outros inquilinos estão furiosos. O senhor passou a noite inteirinha batendo no piano. Isso não se faz".
"Isso não se faz", repeti automaticamente. Quando cheguei à calçada, uma dúvida angustiava-me. E se eu não encontrasse mais a casa do anjo triste? O meu primeiro impulso foi o de correr para a Rua do Salgueiro. Contive-me: era melhor esperar a hora da primeira lição.
Naquela tarde dei as outras lições com a atenção vaga. Pouco antes das cinco, sem a menor explicação deixei uma aluna em meio dum estudo de Chopin e encaminhei-me para a Rua do Salgueiro. Quando avistei os dois arranha-céus que flanqueavam o jardim da casa do anjo, afrouxei o passo. A rua estava deserta e as lâmpadas ainda apagadas. Uma bruma dourada algodoava o ar, amortecendo todos os sons. Abri o velho portão, entrei, atravessei o jardim, sorri para o anjo e bati à porta. A criada fez-me entrar. Um relógio no fundo da casa começou a dar as horas. Adriana esperava-me de pé junto ao piano.
Notei que tinha os olhos brilhantes de lágrimas.
— Andou chorando?
Fez que sim com um aceno de cabeça e, sentando-se ao piano e batendo distraidamente numa tecla e noutra, balbuciou:
— Estive lendo a história do naufrágio.
— Que naufrágio?
Fitou em mim o olhos surpresos.
— Então não sabe, não leu? O do Titanic…
— Ah!
A catástrofe do Titanic, ocorrida no ano em que nasci, havia de me deixar profundamente emocionado quando, dez anos mais tarde, a vi descrita numa revista ilustrada com todos os seus pormenores dramáticos.
— Bom... — murmurei. — Agora toque alguma coisa para que eu avalie o seu adiantamento.
Adriana pôs-se a tocar uma sonatina de Scarlatti com algumas hesitações mas com muito sentimento. Enquanto ela tocava, pude observar-lhe melhor as feições. Não me parece possível retratar com palavras um rosto de mulher. O que importa não é o seu formato, a cor dos olhos, o desenho da boca e do nariz ou o tom da pele. É, antes, uma certa qualidade interior que ilumina a face, animando-a e tornando-a distinta de todas as outras, e essa qualidade raramente ou nunca se deixa prender até mesmo pela câmara fotográfica.
Existem artistas hábeis ou apenas afortunados que, ao pintarem um retrato de mulher, conseguem uma vez que outra fixar na tela essa luminosidade insituável que à primeira vista parece vir do olhar, mas que no entanto continuará a dar lustro à face mesmo que Ihe vendemos os olhos. Pois um resplendor como esse envolvia a pessoa inteira de Adriana. Sua presença era quente, fácil e amiga.
— Muito bem — disse eu, quando ela terminou de tocar a sonatina. — Já vi que gosta de música. Tocou com alma.
— O senhor acha mesmo? Que bom! Eu adoro a música. A mamãe até me prometeu comprar um gramofone desses de discos, o senhor sabe? Não os de cilindros...
Contei-lhe que era compositor e estava escrevendo uma sonata.
— Ah! Toque então para mim.
— Ainda não está pronta. Só o primeiro movimento.
Naquele instante, a mãe de Adriana surgiu à porta. Assumi um ar grave de professor e disse:
— Bom. Vamos agora tocar umas escalas.
Minha vida, então, mudou por completo. Eu passava as horas a esperar com ansiedade o momento de estar com Adriana naquela sala vespertina. Jamais contei a quem quer que fosse o meu segredo. A ostra agora fechava-se mais que nunca na concha, ciosa de sua pérola.
Havia, entretanto, momentos em que eu temia não o mundo, mas o lógico que mora dentro de cada um de nós e que a qualquer minuto poderia pedir explicações sobre o que me estava acontecendo. E toda a vez que esse censor ameaçava fazer a temida pergunta, eu subornava-o: "Preciso acreditar naquilo, senão estarei perdido para sempre."
Madrugadas houve em que andei à-toa pelas ruas com um desejo quase insuportável de ir olhar a casa do anjo triste. Uma voz secreta, porém, aconselhava-me: "Não vás. Se fores, podes descobrir que tudo não passa duma ilusão." E não ia.Mas nos dias de lição lá estava eu a cruzar alvoroçado o jardim antigo, a acariciar a cabeça do anjo, a bater na porta e a entrar na sala, no mundo e no tempo de Adriana.
Uma doce intimidade se foi formando entre nós, um entendimento que não dependia de palavras nem de pontos de referência no tempo ou no espaço.
Quando a mãe não estava presente, Adriana descrevia-me cenas e impressões de sua infância passada naquela mesma casa. Contou-me da noite em que entrara o Século e ela fora pela mão do pai ver a Grande Exposição. Ah! Nunca mais esquecera o carrossel, os palhaços, os jogos, a sala dos espelhos e acima de tudo os fogos de artifício, que romperam exatamente ao soar da última badalada da meia-noite, acompanhados do rebimbar dos sinos de todas as igrejas da cidade!
Adriana quis saber onde estava eu naquela grande noite.
— No mar — respondi, sem saber ao certo por quê. E ela sorriu, aparentemente satisfeita com a resposta.
Às vezes quem falava mais era eu, surpreendido e encantado que estava por encontrar alguém que se interessasse pela minha pessoa e pela minha vida. Esvaziei assim o peito de muitos cuidados e segredos. Coisas que eu trazia fechadas a sete chaves no recesso de meu ser, vieram à tona e transformaram-se em palavras.
Como as nossas conversas se prolongassem numa surdina suspeita, mais duma vez a mãe de Adriana apareceu à porta para perguntar por que o senhor professor havia interrompido a lição. Tivemos, então, de inventar um estratagema que muito nos divertia. Adriana tocava seus exercícios e nós conversávamos protegidos por essa cortina de música.
Mas como eram vazias e tristes as horas que eu passava longe dela! A única coisa que possuía o dom de me devolver quase inteira a presença de Adriana era a sonata, a cujo desenvolvimento me entreguei com paixão durante todo aquele mês de maio em que fui perdendo um por um os alunos, graças às minhas impontualidades e distrações.
O segundo movimento, um scherzo, veio-me fácil à imaginação e com a mesma espontaneidade levei-o para a pauta. Entrei depois no terceiro, um molto agitato, que compus num dia de fins de maio em que o Inverno mandara no vento o seu primeiro recado. Eu temia a chegada do frio, pois uma misteriosa intuição me dizia que os ventos de julho poderiam impelir meu barco para fora do braço morto, devolvendo-o à correnteza do Tempo e afastando-me para sempre da criatura que eu amava.
Uma tardinha, mal entrei na casa do anjo, Adriana veio ao meu encontro sorrindo, com o jornal do dia nas mãos.
— Veja! — exclamou. — Ontem nasceu uma criança com o seu nome.
Mostrou-me a coluna social e eu senti um calafrio ao ler nela a participação de meu próprio nascimento.
— Que destino terá essa criança? — perguntei.
— Talvez chegue a Presidente da República.
— Ou não passe jamais dum simples professor de piano…
Adriana fitou-me com uma tão profunda expressão de ternura, que fiquei conturbado. E para esconder o meu embaraço, gaguejei:— Vamos tocar aquela sarabanda…
Foi no último dia de maio que levei a sonata pronta à casa do anjo. Toquei-a para Adriana. O primeiro movimento traduzia a minha surpresa e a alegria de encontrá-la. Era entretanto um allegro ma non troppo, pois no fundo desse contentamento já se podia entrever o temor que eu tinha de um dia perdê-la. O scherzo pintava com cores vivas não só os momentos felizes que passáramos juntos naquela sala como também cenas da infância de Adriana. Lá estava a menininha de tranças compridas ora a brincar no quarto com suas bonecas, ora a correr no jardim tangendo um arco tricolor. Depois era Adriana a rir um riso assustado diante daquelas sete outras Adrianas deformadas que espelhos côncavos e convexos lhe deparavam na sala mágica da Grande Exposição. Vinha a seguir um molto agitato de curta duração que descrevia o desespero dum homem a caminhar desorientado pelas ruas vazias, em busca dum amor impossível perdido no Tempo. E a sonata terminava com um prolongado adagio repassado dessa tristeza resignada de quem se rende diante do irremediável, sem rancores para com a vida ou as outras criaturas — um movimento lento e nostálgico sugestivo dum rio a correr para o mar, levando consigo a saudade das coisas vistas em suas margens e a certeza de que suas águas jamais tornariam a refletir aquelas imagens queridas.
Quando terminei de tocar, Adriana balbuciou:— Linda, muito linda.
— Pois é sua.
Tirei do bolso a caneta e por baixo do título — Sonata em Ré menor — escrevi: "Para Adriana. Maio de 1912."
Ela olhou-me com um jeito triste e os seus olhos encheram-se de lágrimas. Desejei então ter a confirmação de que ela me amava, queria que ela me dissesse isso com palavras.
Talvez eu não fosse digno do milagre que me acontecera, pois ansiava por tocar Adriana, tê-la para mim, trazê-la para o meu mundo, para o meu tempo. E se havia no meu desejo aquela urgência tão aflita era porque eu notara no ar lá fora sinais de Inverno: a cabeça do anjo estava gelada quando eu a acariciara aquela tarde ao chegar.
A certeza de não pertencer àquele lugar e àquela hora — pois eu não passava dum fantasma do futuro — deu-me uma audácia de que nunca antes eu havia sido capaz. Tomei a mão de Adriana nas minhas e exclamei: "Eu te amo, eu te amo, eu te amo!" Ela ergueu-se, puxou bruscamente a mão e voltou o rosto, murmurando: "Mas é impossível!" E com voz trêmula contou-me que estava comprometida e ia casar em julho. Não amava o noivo, isso não! Mas a mãe insistia no casamento e não lhe restava outra alternativa senão obedecer.
Fiz então algo de insensato pois devia saber que nenhum gesto meu, nenhuma palavra, nenhum desejo poderia alterar o que já havia acontecido.
— Mas ninguém pode ser obrigado a casar com quem não ama! — gritei.
Naquele instante a mãe de Adriana entrou na sala e com uma voz que me deixou gelado, disse:
— O senhor está cometendo uma indignidade. Traiu a minha confiança e abusou de minha filha. Saia imediatamente desta casa!
Fora encontrei o primeiro sopro de Inverno e um céu de cinza. As horas que se seguiram foram de desespero. Recolhi-me ao quarto mas não encontrei consolo na música nem nos livros. Busquei, mas em vão, encontrar sinais palpáveis de que tudo aquilo não fora apenas uma alucinação ou um prolongado sonho. Nada encontrei além das minhas recordações. Deitei-me na cama e chorei como havia muito não chorava.
No dia seguinte, quando saí a andar de novo pelas ruas, foi com a sensação de estar perdido numa cidade estranha e hostil. Meus passos acabaram conduzindo-me para a Rua do Salgueiro, e eu levava no coração um pressentimento cruel, que não tardei a ver confirmado. Bem no lugar onde estava a casa do anjo triste, erguia-se agora um edifício de apartamentos de vinte andares. Atravessei a rua e entrei num café. Fiz perguntas com ar indiferente ao criado que me serviu. Lembrava-se ele dos prédios primitivos daquela rua?
— Não senhor — respondeu. — Sou novo aqui. Pergunte ao dono do café, que é um dos moradores mais antigos desta zona. Patrão, este moço quer perguntar-lhe uma coisa…
O proprietário do café, um homem grisalho com um ar de bondade cansada ou desiludida, aproximou-se. Fiz um sinal na direção da rua.
— Que fim levou a casa branca colonial que havia lá do outro lado, com um anjo de bronze no jardim?
O homem lançou-me um olhar intrigado.
— Quantos anos o senhor tem?
Disse-lhe a minha idade e ele perguntou:
— Como é que se pode lembrar dessa casa se ela foi derrubada faz mais de vinte e cinco anos?
Sacudi os ombros. Uma estranha calma agora me adormentava o espírito. Tudo tinha acabado como devia. O meu barco deixava-se levar pela correnteza do rio e eu não sabia nem queria saber o que me esperava no Grande Oceano. Nada mais importava. Eu passara a viver o adágio da sonata.
O proprietário do café, entretanto, esperava ainda a resposta.
— O senhor acredita em milagres? — perguntei. Ele sacudiu negativamente a cabeça e respondeu:
— Eu, não. E o senhor?


A minha vida voltou a ser o que fora antes. Aquele Inverno foi longo e sombrio. A lembrança de Adriana vivia comigo e era nela que eu pensava quando compunha minhas peças. Recusava-me ainda a examinar aquele singular episódio de minha vida à luz da razão. Quando menino li numa antologia o poema do poleá que dissecou de tal forma a mosca azul que acabou destruindo o seu mais belo sonho. Aprendi a lição.
Isso, porém, não impediu que num dia de setembro eu tornasse a entrar na Biblioteca Pública, pedisse a Confúcio jornais antigos, de 1912 até 1920, e me pusesse a folheá-los com uma inquieta esperança.
No número de julho de 1912 encontrei a notícia do casamento de Adriana. Passei os olhos por vários volumes que cobriam cinco anos, sem encontrar a menor referência quer a ela quer ao marido, que o cronista social afirmava ser "um esteio da nossa sociedade".
Mas num número de maio de 1917 dei com a participação do nascimento da filha do casal, que recebera em batismo o nome da mãe. E, ao abrir o volume correspondente a 1919, na primeira página do primeiro jornal de janeiro, vi um convite de enterro. Lá estava, entre duas tarjas negras, sob uma cruz, o nome da minha Adriana. Li o endereço da casa mortuária, que nada significava para mim, uma vez que Ela não estava mais lá, e fechei o volume, numa confusão de sentimentos, fiz um sinal amistoso para Confúcio, saí da Biblioteca e entrei num táxi. "Cemitério da Luz", pedi.
Eu imaginava para Adriana uma sepultura simples: uma lápide cercada de relva, e sobre a lápide, sentado numa pedra, o anjo triste. No entanto a imaginação burguesa do marido havia-lhe dado um mausoléu pretensioso de mármore esverdeado, com um pórtico grego e uma inscrição latina na base do frontão. Encostei o rosto no vidro da porta do jazigo e, depois que os meus olhos se habituaram à penumbra do interior, pude divisar, em cima dum aparador de mármore, um grande retrato de Adriana. Senti um arrepio. Quando eu andava pelas ruas da cidade naquela inesquecível tarde de abril — refleti — Adriana já estava morta e sepultada. No entanto…
Não. O melhor era entesourar as doces lembranças e não procurar saber a razão de nada.
Ouvi uma voz.
—Alguma conhecida sua?
Voltei-me e dei com uma mulher muito jovem que me mirava com curiosidade. Estava vestida de verde, trazia uma braçada de junquilhos e o vento agitava-lhe os cabelos bronzeados.
É alguém que conheci há muito tempo — expliquei.
Houve um curto silêncio em que fiquei de olhos baixos a fitar a sombra da desconhecida no pavimento de mosaicos da alameda.
— Pergunto — esclareceu ela — porque esse é o túmulo de minha mãe. Não tive a menor surpresa. Antes de ela pronunciar aquelas palavras, eu já as havia pressentido. Ergui os olhos. A moça parecia-se com a mãe. Não era uma parecença de irmã gêmea, uma semelhança de traços, mas sim uma identidade de clima, de aura, de... Não sei por que estou sempre tentando definir o indefinível. Duma coisa, porém, estou certo: os olhos eram os mesmos no desenho e na cor. Só diferiam na expressão. Nos da Adriana morta havia paz. Nos da Adriana viva, algo que me inquietava.
— Mas como podia ter conhecido a minha mãe? Ela morreu há quase vinte e dois anos. Nesse tempo o senhor devia ser uma criança…
De novo baixei o olhar para a sombra.
— Confesso que menti quando disse que era uma conhecida minha. O que aconteceu mesmo foi que eu ia passando e olhei para dentro do jazigo e…
— Está bem. Não precisa explicar. Olhar não é nenhum pecado.
Abriu a porta do mausoléu, voltou-se para mim e perguntou se eu queria entrar. Respondi que não. Ela entrou, depôs as flores sob o retrato, ajoelhou-se ao pé do altar e ficou a orar. Uma voz dizia-me: "Foge, foge enquanto é tempo."
No entanto eu permanecia onde estava, como que enfeitiçado.
Adriana ergueu-se, saiu do jazigo, fechou a porta e ao voltar-se disse:
— O senhor ainda está aí? Posso levá-lo para a cidade no meu carro. Vamos!
Disse esse vamos com uma autoridade que não admitia contestação. Saímos a caminhar lado a lado pela alameda de ciprestes, e eu olhava para as nossas sombras sobre os mosaicos sem saber ao certo que pensar de tudo aquilo. O automóvel era um conversível bege, reluzente de metais cromados. Entrei, sentei-me ao lado de Adriana, e depois que o carro arrancou fiquei a examinar obliquamente o perfil da inesperada companheira.
Eu estava embaraçado, sem saber que dizer. Não me foi, porém, necessário procurar assunto, pois Adriana não cessou de falar, lançando-me de quando em quando olhares rápidos e incisivos. Como era o meu nome? Onde morava? Que fazia? Músico, hein? Interessante.
Contou-me que gostava de música, tocava um pouco de piano, tinha uma discoteca fabulosa. Perguntou-me que pensava eu de Stravinsky e de Béla Bartók. Respondi que preferia os primitivos italianos. —Ah! Mas o senhor não acha que os clássicos não satisfazem mais a nossa sensibilidade superexcitada de habitantes do caos?
— Sou um tanto conservador…
— Está-se vendo pelas suas roupas — replicou Adriana, soltando uma risada, o que aumentou o meu embaraço e a minha sensação de solitude.
No entanto confesso que agora não desejava ver-me livre daquela criatura. Fosse como fosse, ela era um prolongamento da Outra.
— Onde quer ficar? — perguntou, quando nos aproximávamos do centro da cidade.
—Ah! Já sei. O senhor vai à minha casa. Tomaremos um drink e eu o apresentarei ao meu pai, que é um amor de velho. Quero que toque para mim uma das suas composições. As minhas amigas vão ficar loucas de inveja se eu descobrir um novo gênio musical…
— Não se iluda. Sou um modesto professor de piano.
— Quem vai decidir isso sou eu!
Apeamos diante duma dessas casas modernas, brancos sepulcros cúbicos lisos e frios. Atravessamos um jardim riçado de cactos em meio do qual avistei um velho conhecido: o anjo triste.
— Está vendo aquela coisa ali? — perguntou Adriana apontando para o anjo.
— Não tem nada a ver com esta residência funcional. Estava no jardim da casa onde o papai noivou com mamãe. Ora, o velho, que é um sentimentalão, mandou trazer o monstrengo para cá…
O interior da casa era claro, arejado, colorido e duma limpeza polida e impessoal, sem o menor traço de convívio humano. No canto do vasto living onde ficamos, havia um piano de cauda.
— Que pena o velho ainda não ter chegado! — lamentou Adriana. — Mas ele não demora…
Apontou para o piano:
— Abanque-se e toque alguma coisa de sua autoria.
Obedeci. Comecei a tocar a sonata que compusera para a outra Adriana.
— Espere! — gritou a filha. — Eu conheço isso. Um momento… Saiu da sala e voltou pouco depois trazendo um papel de música amarelo no qual reconheci, comovido, a Sonata em Ré Menor. Lá estavam a dedicatória e a data, na minha própria letra.
— Esta música foi escrita em 1912 por um admirador de minha mãe. Agora explique-se, seu plagiário!
Encolhi os ombros.
— Perdoe-me. Devo ter ouvido essa melodia há muito tempo… e esquecido. Depois ela me voltou à memória e eu pensei que… Bom, essas coisas acontecem…
— Claro que acontecem.
Deu-me uma palmadinha tranqüilizadora no ombro e ofereceu-me depois um cigarro. Disse-lhe que não fumava. Ela acendeu o seu, tirou uma baforada, olhou-me bem nos olhos e murmurou:
— Engraçado, quando vi você lá no cemitério tive a impressão de que já o conhecia. Só não me lembro de onde…
— Pode ser.
Adriana bateu numa tecla dum modo que me lembrou dolorosamente a Outra. A sua voz perdeu a agressividade e fez-se doce e amiga quando me perguntou:
— Você acredita em pressentimentos?
— Sempre.
Adriana mirou-me com uma expressão enigmática. Depois, pousando a mão no meu braço, como se fosse uma velha amiga, disse:
— Fique tocando essa sonata enquanto eu vou buscar alguma coisa para a gente beber.Comecei a tocar. Esperei que a primeira frase da sonata tivesse o poder de conjurar a presença da minha Adriana. No entanto, o que ela trazia à minha mente era a imagem duma mulher vestida de verde, com uma braçada de junquilhos, o vento da Primavera a revolver-lhe os cabelos.
Senti então que agora, mais que nunca, eu corria o risco de perder para sempre o meu sonho. Veio-me um terror quase pânico do futuro.
Ergui-me, apanhei o chapéu, e saí daquela casa para sempre.


domingo, 16 de dezembro de 2012

Olavo Bilac (16/12/1865 - 28/12/1918): Língua Portuguesa


No poema Língua Portuguesa, o autor parnasiano Olavo Bilac (Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1865 — Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 1918) faz uma abordagem sobre o histórico da língua portuguesa, tema já tratado por Camões. Este poema inspirou outras abordagens, como o poema “Língua Portuguesa”, de Gilberto Mendonça e “Língua”, de Caetano Veloso.

Esta história é contada em catorze versos, distribuídos em dois quartetos e dois tercetos – um soneto – seguindo as normas clássicas da pontuação e da rima.

Partindo para uma análise semântica do texto literário, observa-se que o poeta, com a metáfora “Última flor do Lácio, inculta e bela”, refere-se ao fato de que a língua portuguesa ter sido a última língua neolatina formada a partir do latim vulgar – falado pelos soldados da região italiana do Lácio.

No segundo verso, há um paradoxo: “És a um tempo, esplendor e sepultura”. “Esplendor”, porque uma nova língua estava ascendendo, dando continuidade ao latim. “Sepultura” porque, a partir do momento em que a língua portuguesa vai sendo usada e se expandindo, o latim vai caindo em desuso, “morrendo”.

No terceiro e quarto verso, “Ouro nativo, que na ganga impura / A bruta mina entre os cascalhos vela”, o poeta exalta a língua que ainda não foi lapidada pela fala, em comparação às outras também formadas a partir do latim.

O poeta enfatiza a beleza da língua em suas diversas expressões: oratórias, canções de ninar, emoções, orações e louvores: “Amo-te assim, desconhecida e obscura,/ Tuba de alto clangor, lira singela”. Ao fazer uso da expressão “O teu aroma/ de virgens cegas e oceano largo”, o autor aponta a relação subjetiva entre o idioma novo, recém-criado, e o “cheiro agradável das virgens selvas”, caracterizando as florestas brasileiras ainda não exploradas pelo homem branco. Ele manifesta a maneira pela qual a língua foi trazida ao Brasil – através do oceano, numa longa viagem de caravela – quando encerra o segundo verso do terceto.

Ainda expressando o seu amor pelo idioma, agora através de um vocativo, “Amo-te, ó rude e doloroso idioma”, Olavo Bilac alude ao fato de que o idioma ainda precisava ser moldado e, impor essa língua a outros povos não era um tarefa fácil, pois implicou em destruir a cultura de outros povos.

No último terceto, para finalizar, quando o autor diz: “Em que da voz materna ouvi: “meu filho!/ E em que Camões chorou, no exílio amargo/ O gênio sem ventura e o amor sem brilho”, ele se refere a Camões, quem consolidou a língua portuguesa no seu célebre livro “Os Lusíadas”, uma epopeia que conta os feitos grandiosos dos portugueses durante as “grandes navegações”, produzida quando esteve exilado, aos 17 anos, nas colônias portuguesas da África e da Ásia. Desce exílio, nasceu “Os Lusíadas”, uma das oitavas epopeias do mundo.

Fonte: http://www.infoescola.com/literatura/analise-do-poema-lingua-portuguesa/

domingo, 9 de dezembro de 2012

Aníbal Machado (9/12/1884 - 20/01/1964): Viagem aos seios de Duília

Há 118 anos, em 9 de dezembro de 1894, nasceu em Sabará (MG) o escritor Aníbal Machado. 

Autor de apenas 13 contos, Aníbal produziu, pelo menos, uma obra-prima: "Viagem aos seios de Duília", o qual, na opinião dos críticos, não é apenas um dos maiores contos brasileiros, mas merece figurar entre os maiores do conto universal.

Este conto narra as desventuras de José Maria, um funcionário público, que sublimou na dedicação ao trabalho a sua solidão, a falta de convívio com as mulheres, a incomunicabilidade. José Maria jamais se libertou da visão de um seio de Duília, quando ambos eram adolescentes. Ao se ver aposentado, depois de estéreis tentativas de, enfim, "viver a vida", o velho funcionário, mais do que nunca, se volta para aquela visão do passado e decide ir à procura da mocinha que lhe proporcionou, talvez, a única coisa boa da sua vida.

É um texto magistral sobre a coragem do ser e do vir a ser, sobre a busca de novos desafios e a recusa a considerar aposentadoria como sinônimo de morte, embora esta busca e esta recusa possam ser inúteis.


Viagem aos seios de Duília
Aníbal Machado (1944)

Durante mais de trinta anos, o bondezinho das dez e quinze, que descia do Silvestre, parava como um burro ensinado em frente à casinha de José Maria, e ali encontrava, almoçado e pontual, o velho funcionário.
Um dia, porém, José Maria faltou. O motorneiro batia a sirene. Os passageiros se impacientavam. Floripes correu aflita a avisar o patrão. Achou-o de pijama, estirado na poltrona, querendo rir.
— Seu José Maria, o senhor hoje perdeu a hora! Há muito tempo o motorneiro está a dar sinal.
— Diga-lhe que não preciso mais.
A velha portuguesa não compreendeu.
— Vá, diga que não vou... Que de hoje em diante não irei mais.
A criada chegou à janela, gritou o recado. E o bondezinho desceu sem o seu mais antigo passageiro.
Floripes voltou ao patrão. Interroga-o com o olhar.
— Não sabes que estou aposentado?
—Uê!...
— Sim, Floripes. Aposentado.
— E que vai fazer agora, patrão?
— Sei lá, Floripes... Sei lá!
— Mas o almoço será sempre servido à mesma hora, pois não?
— Tanto faz. Pode ser às nove e meia, onze, meio-dia ou quando você quiser. Minha vida de hoje em diante vai ser um domingão sem fim...
Debruçado à janela, José Maria olhava para a cidade embaixo e achava a vida triste. Saíra na véspera o decreto de aposentadoria. Trinta e seis anos de Repartição.
Interrompera da noite para o dia o hábito de esperar o bondezinho, comprar o jornal da manhã, bebericar o café na Avenida, e instalar-se à mesa do Ministério, sisudo e calado, até as dezessete horas.
Que fazer agora?
Não mais informar processos, não mais preocupar-se com o nome e a cara do futuro Ministro.
Pela primeira vez fartava a vista no cenário de águas e montanhas que a bruma fundia.
Inúmeras vezes o fizera, mas sem perceber o Pão de Açúcar e a baía, as ilhas e os navios, o Corcovado e as praias do Atlântico, sempre se interpondo entre seus olhos e a paisagem uma reminiscência molesta, lembrança de antigo aborrecimento ou de contrariedades na Repartição. Se algum navio transpunha a barra e vinha crescendo para o porto no ritmo calmo da marcha, seu coração amargava-se contra o sobrinho Beto que embarcara como radiotelegrafista de um navio do Lóide, e nunca mais dera notícias; se o Cristo do Corcovado se erguia de um pedestal de nuvens, vinha-lhe à memória aquele triste fim de tarde, lá em cima, em que pela primeira vez na vida se conduziu de maneira vergonhosa, embriagado que estava, a dizer impropérios contra a República e contra um ato injusto do "Sr. Ministro", até ser detido por um guarda. Aposentado agora, continuava a ligar os diferentes aspectos da natureza a acontecimentos que a deformavam.
Com os trinta e seis anos perdidos na Repartição, teria perdido também o dom de viver?
Muito próximo se achava ainda desse passado para não lhe receber a influência. A manifestação de despedida fora ontem mesmo. Cobriram-lhe a mesa de flores; saudou-o em nome dos chefes de serviço o diretor mais antigo, seu ex-adversário; falou depois um dos subordinados, estudante de Medicina; por último uma funcionária, a Adélia, que usava decote largo, se referiu "à competência e exemplar austeridade do querido chefe de quem todos se lembrarão com saudade". Uma menina, filha do arquivista, fez-lhe entrega de uma bengala de castão de ouro, com a data e o nome. E o Ministro mandou um telegrama.
Foi só, estava encerrada a etapa principal e maior de sua vida.
Os decênios de trabalho monótono, de "austeridade exemplar" como dizia Adélia, forjaram-lhe uma máscara fria. Atrás dela se escondeu e de si mesmo se perdera. Como fazer desaparecer-lhe os vestígios? Como se reencontrar?
Adélia não podia imaginar o que para ele representava a "exemplar austeridade". Adélia jamais saberá o que ocorria na alma do antigo chefe quando os olhos deste passavam como um relâmpago pelo colo branco de sua subordinada; talvez nem ela pressentisse. Austero coisa nenhuma: desajeitado apenas, tímido: gostaria de poder fazer o que censurava nos outros.
Floripes admirava a bengala procurando decifrar os dizeres do castão de ouro.
— E o que me resta, Floripes, dos trinta e seis anos. Isso e um telegrama do Ministro!
— O que me está a dizer, patrão?
— Nada, Floripes.
"Ora veja! Estou livre agora, livre!... Mas livre para quê?"

Ao clarear do dia seguinte escancarou a janela para a baía. Procurava sentir a manhã de sol como a deviam estar sentindo àquela hora os moradores da bela colina. Mas nada lhe diziam os barcos a vela flutuando longe, nem os castelos de nuvens que se armavam no céu.
Ia experimentar a cidade, andar sem destino. E sem chapéu. A ausência do chapéu seria a primeira mudança exterior em seus hábitos, um começo de libertação. Até então, a moda lhe parecera ridícula, além de fonte de resfriados. E se envergasse uma camisa esporte? Poderiam rir-se dele: a pele do pescoço perdera consistência; e a marca circular do colarinho duro lá estava, firme como uma tatuagem.
Na rua, um colega veio dizer-lhe que os jornais deram a notícia; alguns até com elogios ao velho servidor. O amigo abraçou-o. E logo recuou com certo espanto: — O seu chapéu, Zé Maria?
— Ah, não uso mais!...
— Felizardo! Vai começar a gozar a vida, hein? Já até parece outro homem, disse, interpretando a ausência do chapéu como o primeiro passo para um programa de rejuvenescimento.
O aposentado livrou-se do importuno. "Livre! Estou livre!" Namorou vitrinas, tomou café, repetiu café, tomou chope, foi, voltou, viu, tomou café outra vez, cumprimentou... O tempo não passava. Mais lento ainda do que na Repartição.
A título de despedir-se de alguns companheiros e de apanhar uma caneta-tinteiro, lembrou-se de chegar até lá. Na verdade, sentia-se impelido por um desejo ambíguo, como o general reformado que vai à paisana em visita a seu antigo regimento. Era tarde, porém; o rush se avolumara. Achou melhor voltar para casa, postar-se na fila do bonde. "Livre! Estou livre!"
Durante a subida, a brisa fresca fê-lo sentir a falta do chapéu. Via-se como que despido.
Floripes serviu-lhe o jantar, deixou tudo arrumado, e retirou-se para dormir no barraco da filha.

Mais do que nunca, sentiu José Maria naquela noite a solidão da casa. Não tinha amigos, não tinha mulher nem amante. E já lera todos os jornais. Havia o telefone, é verdade. Mas ninguém chamava. Lembrava-se que certa vez, há uns quinze anos, aquela fria coisa, pendurada e morta, se aquecera à voz de uma mulher desconhecida. A máquina que apenas servia para recados ao armazém e informações do Ministério transformara-se então em instrumento de música: adquirira alma, cantava quase. De repente, sem motivo, a voz emudecera. E o aparelho voltou a ser na parede do corredor a aranha de metal, sempre calada. O sussurro da vida, o sangue de suas paixões passavam longe do telefone de Zé Maria...
Como vencer a noite que mal começava?
Fechou o rádio com desespero, virou dois tragos de vinho do Porto, deitou-se. A espaços ouvia o barulho do bondezinho rilhando nas curvas da colina, a explosão de um e outro foguete que subiam da vertente de Aguas Férreas, seguida de latidos de cães e gritos indistintos. Ingeriu outra dose de vinho. E adormeceu.
O telefone toca. Quem será? Quem se lembraria dele? Algum convite? Trote?
— Alô, meu bem!
— Alô! aqui fala José Maria.
— É engano, proferiu secamente a interlocutora.
Era engano! Antes não o fosse. A quem estaria destinada aquela voz carregada de ternura? Preferia que dissesse desaforos, que o xingasse.
A boca feminina já devia estar dizendo frases de amor na linha procurada.
Era um triste aparelho telefônico!
Atirou-se de bruços na cama. E sonhou. Sonhou que conversava ao telefone e era a voz da mulher de há quinze anos... Foi andando para o passado... Abriu-se-lhe uma cidade de montanha, pontilhada de igrejas. E sempre para trás — tinha então dezesseis anos -, ressurgiu-lhe a cidadezinha onde encontrara Duília. Aí parou. E Duília lhe repetiu calmamente aquele gesto, o mais louco e gratuito, com que uma moça pode iluminar para sempre a vida de um homem tímido.
Acordou com raiva de ter acordado, fechou os olhos para dormir de novo e reatar o fio de sonho que trouxe Duília. Mas a imagem esquiva lhe escapou, Duília desapareceu no tempo.
À medida que os meses passavam, foi tomando horror à expressão "funcionário público aposentado", que lhe cheirava a atestado de óbito. Jurou nunca mais freqüentar a "Mão do Salvador", instituição de caridade, cuja sede, com seus móveis severos e gente sem graça, lembrava o ambiente atroz da Repartição.
Chamava Floripes a todo momento, queria saber minúcias do passado dela.
Ia dar início a profundas modificações em sua pessoa. Começaria pelos trajes: roupa clara, moderna, não mais aqueles ternos escuros cobrindo a eventual austeridade. Seu físico de homem empinado e enxuto não parecia de todo desagradável. Entraria de sócio para algum clube; e se encontrasse um professor discreto, talvez aprendesse a dançar.
Essas providências seriam a sua toilette exterior para a nova fase da vida.
Semanas depois, aliviado do colarinho duro, era visto pelas ruas em trajes mais leves, sorrindo forçado para os conhecidos.
Tornou-se sócio de um clube da Lagoa. Sozinho porém nunca punha os pés lá, até que um dia se fez acompanhar pelo Lulu, bom atleta e péssimo funcionário, que o apresentara como "velho servidor do Estado" às principais beldades do bairro. Como dialogar com elas? Não conhecia futebol nem equitação, não sabia jogar baralho, não guardava nomes de artistas de cinema, ignorava os escândalos da sociedade.
Tentou manter conversa, não conseguiu. Parecia-lhe que zombavam dele. Se algumas moças lhe dirigiam a palavra era como se lhe atirassem esmola. Acabou a noite só e triste, agarrado ao seu copo de uísque. Quase nunca provava essa bebida; achava-a até ruim. Como fazia parte do rito social, não custava virar o copo. Deixou o Lulu com as moças, e saiu fazendo uma careta. "Velho servidor do Estado..."
O farol dos automóveis apagava nas águas da Lagoa o reflexo das últimas estrelas. Um casal abraçava-se debaixo de uma amendoeira. Sentiu-se mais só. A vida era para os outros. Antes tivesse ainda algum processo a informar; estaria ocupado em alguma cousa. Não! Um começo de soluço contraiu-lhe a garganta. Chamou um taxi.
No dia seguinte postou-se, como outros de sua idade, numa das esquinas da Rua Gonçalves Dias, local preferido pelos militares da reserva e aposentados de luxo, gente saudosa do passado. Notou que eles se compraziam em adejar perto dos doces da confeitaria, e ver passar as damas elegantes de outrora.
Ali se perfilava, de terno branco, um velho Almirante de suas relações:
— Olhe, faça como eu: nunca se convença de que é aposentado. Adquira algum vício, se já não o tem. Evite os velhos. Um pouco de exercício pela manhã. Hormônios às refeições, não é mau. Quanto a conviver, só com gente moça.
Ele aprendera na véspera o que era conviver com gente moça... Para rematar, e como índice de otimismo, contou-lhe o Almirante uma anedota pornográfica.
O funcionário riu com esforço, e despediu-se enojado. Entrou numa livraria. Buscaria a solução na leitura dos romances.
Pediu um, à escolha do caixeiro. Tentou ler. Impossível passar das primeiras páginas. Não compreendia como tanta gente perde horas lendo mentiras. Ao atravessar, dias depois, o Viaduto, deixou o livro cair lá embaixo, sentiu-se livre daquilo.
O melhor mesmo era ficar debruçado à janela. E todas as manhãs, enquanto a criada abria a meio as venezianas para deixar sair a poeira da arrumação, José Maria as escancarava para fazer entrar a paisagem. Dali devassava recantos desconhecidos. Ilhas que jamais suspeitara. Acompanhava a evolução das nuvens, começava a distinguir as mutações da luz no céu e sobre as águas. Notava que tinha progredido alguma coisa na percepção dos fenômenos naturais. Começava a sentir realmente a paisagem. E se considerava quase livre da uréia burocrática.
Esse noivado tardio com a natureza fê-lo voltar às impressões da adolescência.
Duília!...
Toda vez que pensava nela, o longo e inexpressivo interregno do Ministério, que chegava a confundir-se com a duração definitiva de sua própria vida, apagava-se-lhe de repente da memória. O tempo contraía-se.
Duília!

Reviu-se na cidade natal com apenas dezesseis anos de idade, a acompanhar a procissão que ela seguia cantando. Foi nessa festa da igreja, num fim de tarde, que tivera a grande revelação.
Passou a praticar com mais assiduidade a janela. Quanto mais o fazia, mais as colinas da outra margem lhe recordavam a presença corporal da moça. Às vezes chegava a dormir com a sensação de ter deixado a cabeça pousada no colo dela. As colinas se transformavam em seios de Duília. Espantava-se da metamorfose, mas se comprazia na evocação.
Não ignorava o que havia de alucinatório nisso. Chegava a envergonhar-se. Como evitá-lo? E por que, se isso lhe fazia bem?
Era o aforamento súbito da namorada, seus seios reluzindo na memória como duas gemas no fundo d'água. Só agora se dava conta de que, sem querer, transferira para Adélia a imagem remota. Mas Adélia não podia perceber que era apenas a projeção da outra. Mesmo porque, temendo o ridículo, José Maria jamais se deixara trair.
Disponível, sem jeito de viver no presente, compreendeu que despertara com muitos anos de atraso nos dias de hoje. Não encontraria mais os caminhos do futuro, nem havia mais futuro nenhum. Chegara ao fim da pista. De Beto, não havia mais notícias.
Da velha cidade que restava? Onde o Rio de outrora? As casas rentes ao solo, os pregões, o peixeiro à porta? A cada arranha-céu que subia — eles sobem a todo momento — a cidade calma de José Maria ia-se desmanchando.
Sentiu que sobrava. Impossível reatar relações com uma cidade irreconhecível. Pediu que o cancelassem do clube da Lagoa; desistiu da aula de dança.
Só lhe fazia bem desentranhar o passado. Dias e noites o evocava com a cumplicidade da paisagem. E no fundo da contemplação, insistiam os dois focos luminosos. Ora se acendendo, ora se apagando.
Odiava recordar-se da Repartição. Nem sabia explicar como, nas tardes de movimento, mais de uma vez suas pernas o largaram nas imediações do Ministério.
Começava a sentir-se livre. Para outra direção o chamava o que havia de mais excitante em sua vida. Ao apelo póstumo, nem tudo de seu passado parecia perdido. Sabia agora o que ia fazer. Trauteando uma canção, tomou o bondezinho. Entrou em casa com o coração palpitando. Reviu-se mais jovem ao espelho.
Quando Floripes chegou de manhã cedo, encontrou-o de pé. Lamentava não ter tempo de encomendar um terno novo para apresentar-se melhor ao seu passado...
— Floripes, tu tomas conta do apartamento. Eu vou viajar. Meu procurador te dará dinheiro para as despesas. Se Beto aparecer, dirás que eu parti... Dirás também que... Não, não precisas dizer mais nada. Se quiseres, traze para cá tua filha e o netinho.
Floripes parou espantada.
— Será que o patrão vai-se embora?
— Vou, Floripes.
— Para não voltar mais?
— Não sei, Floripes.
— E se chegar alguma carta, patrão, para onde devo mandar?
— Não haverá cartas para mim. Ninguém me escreve...
— E se alguém telefonar?
— Oh, Floripes, por favor...
O que transpirava de solidão e amargura nessas palavras, compreendeu-o a velha Floripes, que se absteve de novas perguntas.
Descendo à cidade, José Maria comprou malas, preveniu passagens. Outro homem agora, alegre quase. Não precisaria mais fazer esforço para ser o que não era. Difícil coisa querer forçar a alma e o corpo a uma vida a que não se adaptam. Agora, sim, ia ser feliz. E se alvoroçava como o imigrante que se repatria.
Fazia uma tarde bonita. Pela primeira vez Zé Maria achara agradável estar na rua. Mulheres sorrindo, vitrinas iluminadas. Parecia que a cidade, à última hora, caprichava em exibir-lhe alguns de seus encantos. Assim procede a mulher indiferente, ao ver partir o homem a quem fez sofrer.
Comprou um mapa do país. Só com apertá-lo ao peito sentiu-se livre e já fora do Rio. Voltou para casa. Abriu-o em cima da cama, seguindo com a ponta do lápis os meandros do coração montanhoso do Brasil.
— Aqui! marcou.
Era perto de uma cordilheira no centro-sul. A cidadezinha enchia-lhe o coração, embora insignificante demais para constar na carta.

Estranhou o apito fanhoso da Diesel à hora da partida. Voz sem autoridade, mais mugido que apito. Tão diferente do grito lírico da locomotiva que há mais de quarenta anos o trouxera do interior. Entristeceu. Muita coisa haveria que encontrar pela frente, modificada pelo progresso: a locomotiva por exemplo; o trem de luxo em que viajava.
Seu desejo era refazer de volta, pelos meios de antigamente, o mesmo roteiro de outrora. Impossível. Estradas novas vieram substituir-se aos caminhos que levam ao passado. Com o coração inundado de reminiscências, preferia evitar Belo Horizonte. Receava que a visão da cidade nova viesse aumentar-lhe a sensação do envelhecimento pessoal.
Pela madrugada, o trem parou horas entre duas estações. O viajante despertou com o silêncio. Só ouvia o sussurro do ventilador. Toda a composição de um cargueiro tinha tombado mais adiante, entornando manganês pelo vale. Preparava-se a baldeação.
José Maria aproveitou para descer, e sentir o cheiro de Minas. O sol vinha esgarçando devagar o véu de bruma que cobria as serras tranqüilas. Anoitecia já em Belo Horizonte, quando chegou com atraso. Disseram-lhe que era preciso tomar, no dia seguinte, a "jardineira" para Curvelo.
A nova Capital, mesquinha cidade poeirenta há quarenta anos, era agora um grande centro onde ninguém se lembraria dele. Para que então sair à rua, ver arranha-céus, caminhar entre as novas gerações de desconhecidos? Preferível fechar-se no quarto do hotel até que chegasse a hora da "jardineira".
Agradável na manhã seguinte o percurso numa rodovia que não era de seu tempo. Ônibus e caminhões escureciam as estradas de poeira. Ao pé de uma serra calcárea, que conhecera intacta, as chaminés de uma fábrica de cimento emitiam rolos de fumaça escura. Mais adiante, os fornos de uma siderúrgica.
Cansado, adormeceu. Despertou com um coro longe, de vozes, coro que subitamente cresceu e passou, lançando-lhe no coração um jacto de poesia. Era uma "jardineira" repleta de mocinhas, colegiais de uniforme azul e branco que desciam do sertão para a reabertura do ano letivo na capital. No banco ao lado, um passageiro queimado de sol parecia esperar que José Maria acordasse para encetar conversa.
— Pois é. Estamos em fins de fevereiro e nada de chuva! Em toda a parte agora tem Ceará. Se aquilo lá desaba — apontou para uma nuvem escura — é porque Deus qué me ajudá: tá mesmo em cima de minha roça. Mas não desaba, não!...
Olhou fitamente para José Maria. Teria achado nele um tipo estranho à região.
— Vosmecê também vai comprá cristá, não é?
— Não, respondeu José Maria.
— Tá indo pro Rio S. Francisco?
— Não. Estou indo para um lugar chamado Pouso Triste.
— Pra cá de Monjolo? Ah! conheço por demais... Já botei roça lá perto.
— Ouviu por acaso falar em Duília?
— Duília... Duília... Espera aí... Duília... Ah! o senhor queria dizer D. Dudu, não é? Conheço muito.
José Maria sentiu um estremecimento. Arrependera-se da pergunta. Calou-se. A deformação de um nome tão doce como Duília horrorizava-o. Devia ser outra pessoa. Era melhor não prosseguir na conversa. O homem queimado compreendeu, e calou-se.
Ao entardecer, apitava uma fábrica de tecidos e uma vitrola esganiçava a todo pano, quando a "jardineira" encostou à porta do hotel principal de uma cidade. Era Curvelo, boca do sertão mineiro.
José Maria já se sentia dentro da área do passado.
Daí em diante a viagem se faria nas costas de um burro. Tudo como quando tinha dezesseis anos. Tratou um "camarada" que o gerente do hotel lhe indicara. Na manhã seguinte, cedinho, partiu rumo de leste.
— Se não cai temporá, nóis chega dereitinho, patrão — disse-lhe o camarada, enquanto Curvelo desaparecia atrás, numa nuvem de poeira.
O velho funcionário, ao mesmo tempo que sentia a delícia de montar um animal e respirar o ar puro, receava lhe voltassem aquelas pontadas que o atormentavam na Repartição.
Soero, o camarada, desconfiava estar seguindo um homem importante; mas não ousava perguntar.
— O Rio das Velhas vem vindo por aí, anunciou depois das primeiras horas de caminhada.
Pouco depois, o rio fiel aparecia ao viajante. — Oh! velho Rio das Velhas! exclamou José Maria. Sempre no mesmo lugar! E todo esse tempo me esperando!
Achou-o tranqüilo, mas um pouco emagrecido.
Soero foi chamar o balseiro, enquanto José Maria, agachado na areia, deixava que o velho rio lhe ficasse correndo longo tempo entre os dedos.
Embarcaram as alimárias, e foram deslizando de balsa para a margem oposta.
De pé, o funcionário parecia estar sonhando. A bengala desamarrou-se da mala e caiu na correnteza. Soero quis mergulhar. — Deixa, deixa! gritou José Maria.
Preferia não perdê-la. Era afinal uma lembrança dos ex-colegas. Mas já que foi para o fundo do rio, que lá ficasse.
Almoçaram e retomaram a montaria.
— Agora vem Dumbá. Oito léguas, disse o camarada.
— E o Paraúna? reclamou o viajante, recordando-se.
— Ainda temos que atravessá.
Tudo era deslumbramento para o viajante. À medida que ouvia esses nomes quase esquecidos, a coisa nomeada aparecia logo adiante, rio ou povoado.
As léguas se estiravam, a noite ia longe. Ou porque a escuridão fosse maior com a lua minguante, ou porque a correnteza engrossasse de repente, o Paraúna surgiu mudado e agressivo. Nem parecia o rio que os viajantes atravessam a vau. Soero explicou que devia ter chovido muito nas cabeceiras, daí aquele despropósito de águas; mas baixariam depressa, esses rios magrinhos enfezam por qualquer pancada de chuva, depois se aquietam que nem córrego manso.
— Se vosmecê não quisé chegá até o arraiá, a gente espaia os burro e arrancha por aqui mesmo.
Apearam-se. Soero desceu os arreios e a cangalha, amarrou o cincerro ao pescoço do cavalo-madrinha, e deixou os animais pastando perto.
Deitado no couro, José Maria escutava o sussurro das águas. Pouco se lhe dava o corpo moído, a dor nos rins. Nunca se imaginara deitado ao relento, a cabeça quase encostada a um de "seus rios". Ficou a escutá-lo. Era como o primeiro rumor de um passado que vinha se aproximando.
Cobrindo-se com a manta, adormeceu. Soero fumava e se persignava, a olhar desconfiado para a outra margem onde um vulto branco parecendo fantasma esperava pelo abaixamento das águas.
De madrugada o Paraúna voltou ao natural. Soero saudou o vulto de branco com quem cruzou no meio do rio. O homem respondeu em latim. José Maria se espantou ao ouvir frases latinas em cima daquelas águas, naquele ermo... Perguntou o que era aquilo. Soero disse que não sabia, sempre o encontrava bêbado pelos caminhos.
— Dizem que sabe muito e ficou maluco.
As alimárias seguiam agora em trote mais animado para a Rancharia do Dumbá, onde, a conselho do "camarada", devia o viajante descansar o resto da tarde e passar a noite, antes de encetarem a travessia mais difícil da Serra do Riacho do Vento, na Cordilheira do Espinhaço.
A Rancharia é pouso forçado para quem atravessou ou vai atravessar a Cordilheira. Reconheceu-a de longe o viajante, pelo pé de tamarindo. O mesmo de sempre.
O pernoite ali, enquanto os animais recebiam ração mais forte de sal e capim, ia permitir ao metódico funcionário a recuperação das forças exaundas. Viagem violenta demais para um sedentário.
Ficara-lhe nos ouvidos o Paraúna com o barulho de suas águas. Não era o desconforto da cama nem a pobreza do aposento que lhe tiravam o sono; nem o latido dos cães, nem o relinchar dos burros; nem uma sanfona triste que parecia exprimir toda a solidão lá fora: era o fato de se achar mais perto, dentro quase daquilo que não precisava mais evocar para sentir.
Mais algumas léguas e tocaria o núcleo de seu sonho.
O que mais o espantara no gesto de Duília — recordava-se José Maria durante a insônia, agarrando-se ao travesseiro — foi a gratuidade inexplicável e a absurda pureza. Ela era moça recatada, ele um rapazinho tímido; apenas se namoravam de longe. Mal se conheciam. A procissão subia a ladeira, o canto místico perdia-se no céu de estrelas. De repente, o séquito parou para que as virgens avançassem, e na penumbra de uma árvore, ela dá com o olhar dele fixo em seu colo, parece que teve pena e, com simplicidade, abrindo a blusa, lhe disse: — Quer ver? — Ele quase morre de êxtase. Pálidos ambos, ela ainda repete: — Quer ver mais? — E mostra-lhe o outro seio branco, branco... E fechou calmamente a blusa. E prosseguiu cantando...
Só isso. Durou alguns segundos, está durando uma eternidade. Apenas uma vez, depois do acontecimento, avistara Duília. A moça se esquivara. Mas o que ela havia feito estava feito, e era um alumbramento.
Custava acreditar que estivesse agora se aproximando dessa fonte de claridade. Sentiu bater mais depressa o coração. E desejou que o dia raiasse logo.
Puseram-se de novo a caminho. Horas depois, galgavam a serra. Salvo nos capões onde a quaresma e o pequizeiro se destacavam, a vegetação ia-se fazendo mais pobre: canela-de-ema, coqueiro-anão, cacto — enquanto o panorama se ampliava, e a vista abarcava os longes. Por um segundo essa paisagem cruzou no pensamento de José Maria com o panorama de Santa Teresa. Um segundo apenas, pois logo apareceu uma boiada que lhe cobriu o rosto num turbilhão de poeira.
Faltava o trecho maior para se chegar ao Arraial de Camilinho. Os burros suavam na subida penosa. — Daqui a pouco vem o Chapadão, avisou Soero.
A essa palavra, José Maria animou-se. Tal como na antevéspera, ao ouvir o nome Rio das Velhas.
Pela altitude, pelas suas léguas de pedra e vento, pelo seu silêncio, esse chapadão do Riacho do Vento lhe surgira como entidade autônoma e orgulhosa, que dava passagem ao homem mas lhe negava abrigo para morar e pastagem para o gado.
Era o trecho mais imponente e difícil no acesso à região de Duília. Por ali transitara há mais de quatro decênios, fazia uma noite escura, só pelos relâmpagos podia suspeitar o panorama irreal que se desdobrava de dia. Ia então fazer os preparatórios em Ouro Preto, e caminhava cheio de medo para o Futuro; seu pai e um caixeiro-viajante o acompanharam até a primeira estação da Estrada de Ferro. Láo puseram no carro. Foi quando começou a ficar só no mundo, e pela primeira vez chorou o choro da tristeza.
O velho funcionário não dava uma palavra. Contemplava. À esquerda, as extensões lisas das "gerais" do S. Francisco; à direita, as colinas arranhadas pelas minerações da bacia do alto Jequitinhonha. Estranhava o ar parado numa serra que trazia o nome de Riacho do Vento.
Entre os trilhos quase apagados que confundiam o viandante, quem dava a direção era o cincerro do cavalo-madrinha.
Já o sol deixara de reluzir nos aforamentos de pedra e mica, e ainda havia léguas pela frente. Como fica longe o lugar do passado!
Abatido, o olhar vago, o viajante parecia estar seguindo os caminhos do próprio pensamento. O cansaço aumentava. Onde o fim do Chapadão?
Imenso Brasil. Era então por esses ermos sem fim que corriam ofícios e papéis da administração pública?! Quantos, ele mesmo, José Maria, fizera despachar sem a mais vaga idéia das distâncias que iam cobrir! Mergulhava em reflexões. Infinita a distância entre a natureza e o papelório! De repente, dirigindo-se ao camarada:
— Você conhece Duília?
Soero não ouvira bem, ou não compreendera a pergunta que vinha perfurar um silêncio de horas. Esperou que o patrão a repetisse, mas o grito de um pássaro desmanchou o começo do diálogo. E tudo ficou por isso mesmo.
Depois de seis léguas de marcha batida, Soero sentiu que o homem misterioso não agüentava mais.
— Acho que de uma vezada só até Camilinho, é um bocado de chão pra vosmecê.
Propôs uma pausa. Pouco adiante, descobriu uma grota para o pernoite. Num córrego de águas frescas, os animais desarreados mataram a sede. Os dois homens jantaram o que traziam nos bornais. Os couros Foram novamente estendidos. José Maria, amedrontado, perguntou a Soero se havia onças por ali.
O camarada tranqüilizou-o. Enquanto para este era aquela uma noite de rotina, para o velho funcionário repetia-se, a céu descoberto, a aventura excitante das margens do Paraúna. Doíam-lhe tanto os membros e era tal o cansaço, que já não podia contemplar por muito tempo as estrelas que cintilavam pertinho. Mergulhou no sono pesado.
Às onze horas do dia seguinte, entrava no Arraial do Camilinho. Aí se dispunha a refazer as energias para a etapa final.

Tudo o que vinha percorrendo já era país de Duília. Agora sim, não precisava ter pressa. A bem dizer, do alto do Riacho do Vento para cá, a moça parecia ter-lhe vindo ao encontro. Era como se ela viajasse na garupa do animal.
O resto da tarde e a noite passou-os José Maria na pensão da Juvência. A velha nem se lembrava de que ele ali estivera, adolescente, ao deixar Pouso Triste: também ela o supunha algum emissário norte-americano atrás de minério para a guerra. José Maria preferiu passar incógnito. Absteve-se de pedir informações.
Mais seis horas e estaria naquela cidadezinha, face a face com a mulher sonhada. Não imaginava agora fosse tão fácil aproximar-se do que tão longe lhe parecera no tempo ou no espaço.
Detinha o burro a cada momento; olhava, hesitava. Nem mesmo se inquietara com a nuvem de chuva que vinha avançando do nordeste. Soero estranhou a indiferença do patrão. O aguaceiro caiu, molhou a ambos.
José Maria tinha medo de chegar.
Passou a chuva, veio o sol, borboletas voejavam sobre a lama recente. E Pouso Triste se aproximando... perfil de colinas conhecidas... o riacho cristalino com um último faiscador... o sítio do Janjão. Agora, o cemitério onde dormem os seus pais... "Estarei sonhando?"
— Pouso Triste!
Olhou confrangido. Era então aquilo!... E a cidade?
Trazia na memória a visão de uma cidade: surgiu-lhe um arraial!... Pobre e inaceitável burgo, todo triste e molhado de chuva!...
Foi descendo devagar. Passou em frente à igreja, entrou na praça vazia. Fantasmas desdentados conversavam à porta da venda.
A brisa agitava as folhas da única árvore gotejante.
Tinha sido ali...
A pensão. Parou e entrou. Pediu um banho, mudou de roupa. Sórdido chuveiro. Foi para a janela. Povoado lúgubre! Como compará-lo à cidade luminosa que erguera em pensamento para santuário de Duília? Teve raiva de si mesmo. Nenhum parente, ninguém para reconhecê-lo. Melhor assim. Fixou a árvore. Era a mesma... Pelo menos aquilo sobrevivera. Saiu para vê-la de perto; deixou-se ficar debaixo de seus galhos. Reviveu a cena inesquecível... Mas não encontrou o mesmo sabor. A árvore parecia indiferente.
Não se conformava com a falta de claridade. Nem a da luz exterior, nem a outra, subjetiva, que iluminava a cidade ideal onde se dera a aparição da moça.
Pertinho, bem perto devia estar ela. Tão perto que assustava. Dentro de poucos instantes — o seu rosto, a sua voz, os seios!... Mas aquele marasmo, o torpor das coisas — o envelhecimento da árvore e da paisagem, tudo prenunciava a impossibilidade de Duília.
Timidamente, pediu notícias à dona da pensão. A velha fez um esforço de memória. E tal como o passageiro da "jardineira", respondeu: — Duília?... Dona Dudu, não é? Uma viúva? Ah! sumiu daqui já faz tempo. Ouvi dizer que está de professora no Monjolo. Ainda que mal lhe pergunte, vosmecê é parente dela? — Não, disse José Maria. E para desarmar a curiosidade da velha:
— Trago-lhe umas encomendas.
Deixou passar alguns instantes. Perguntou por perguntar:
— Sabe dizer se tem filhos?
— Filhos? Um horror de netos!... Que Deus me perdoe, o marido era uma peste.
Não quis saber do resto.
Despediu-se de Soero, o bom camarada; pagou-lhe bem o serviço. Seguiria sozinho até Monjolo. Conhecia a estrada. Pouco mais de três léguas. Léguas que se tornaram difíceis, pois a lama era muita, e o burro mal ferrado patinhava.
A viagem se arrastava sem o encantamento da que terminara na véspera. Não desejava que a decepção de Pouso Triste influísse na sua chegada a Duília.
Tudo agora parecia pior, o caminho mais estreito, mais aflitiva a ausência de claridade. Sentiu o deserto no coração. Sua alma deixou de viajar. Fazia-lhe falta a presença muda de Soero. Fez parar o animal.
— Será que Duília...
Novamente lhe viera o terrível pressentimento. Como aceitar outra imagem dela senão a que guardara consigo: a namorada eterna, fixa? A imaginação delirante não cedia à evidência da razão.
A poucas horas da amada, José Maria tremia de medo.
O burro começou a andar por conta própria. Os últimos quilômetros o viajante os fez como um autômato.
Monjolo se anunciava por um som de sanfona que parecia o gemido constante do fundo do Brasil.
Foi surgindo pela frente um arraial ainda menor e mais pobre que Pouso Triste. Os urubus não freqüentavam o céu, quase se deixavam pisar pelas patas da alimária. José Maria engoliu um soluço.
Tomados de espanto, os poucos moradores espiavam o estrangeiro.
O letreiro "Escola Rural" aparecia em tinta esmaecida. Uma casinha modesta, com chiqueiro no porão. A sala de espera limpa, com gravuras de santos enfeitados de flores de papel, e que tanto servia à Escola como à residência, nos fundos. As carteiras escolares estavam quebradas.
O viajante apeou-se, bateu à porta. Uma senhora, muito pálida, veio atendê-lo em chinelos.
— Eu queria falar com Duília... Dona Duília... corrigiu.
A senhora fê-lo entrar e sentar-se. Pediu licença, deixou a sala. Momentos depois, voltou mais arrumada. Seus cabelos eram grisalhos, a voz meio rouca, o sorriso agradável, apesar dos dentes cariados. Ainda não tinha sessenta anos, e aparentava mais.
— A senhora também é professora?
Duas crianças gritaram da porta: — Dona Dudu! Dona Dudu!
Ela respondeu: — Vão brincar lá fora. E virando-se para o estranho: — Não se pode ficar sossegada um minuto. Esses meninos acabam com a gente.
José Maria sentiu como que uma pancada na nuca. Baixou as pálpebras, confuso. A professora ficou esperando que ele se identificasse. Notou-lhe a fisionomia alterada, um começo de vertigem.
— Está-se sentindo mal?
Saiu e voltou com um copo d'água.
— Não foi nada. O cansaço da viagem. Já passou.
Olhava para ela estarrecido.
A mulher, aflita por que o desconhecido desse o nome.
— Veio a passeio, não é?
— Não. Não vim propriamente a passeio...
— Um lugar tão distante... Ultimamente as jazidas têm atraído muitos estrangeiros para cá.
— Eu não sou estrangeiro — respondeu o visitante. Sou brasileiro... E daqui... de bem perto daqui. Sou também de Pouso Triste...
Uma expressão de surpresa e simpatia clareou o rosto da professora. José Maria encarou-a com dolorosa intensidade. Subitamente empalideceu. Chegara o momento culminante. Fechou os olhos como se não quisesse ver o efeito das próprias palavras. A professora pressentiu que algo de grave trouxera até ali o sombrio visitante. Atordoada, esperou. José Maria principiou a falar:
— Lembra-se de um rapazinho, há muitos anos, que a viu numa procissão?
A mulher abriu os olhos.
— Nós tínhanos parado debaixo de uma árvore... lembra-se? Ela ainda está lá... não morreu. Eu olhava como um louco para você, Duília...
Ao ouvir pronunciar seu nome com intimidade cúmplice, a professora teve um arrepio. O homem não sabia como continuar. Hesitou um momento.
— Depois... depois eu larguei Pouso Triste. Nunca mais me esqueci. E só agora...
Parou no meio da frase. Tremia-lhe o queixo.
A mulher, assustada, reconhecera nele o rapazinho de outrora. Fitou-o longamente. Passou-lhe pelo rosto um lampejo de mocidade.
Volvendo a cabeça para o chão, enrubesceu com quarenta anos de atraso...
Quedaram-se por alguns momentos. O vazio do mundo pesava sobre o sossego do povoado. Grunhiam os porcos embaixo. Um cheiro de lavagem e de goiaba madura entrava pela janela, e parecia a exalação do passado.
José Maria suspirou fundo. Aquela mulher, flor de poesia, era agora aquilo! Fantasma da outra, ruína de Duília... Dona Duília... Dudu!
A mulher interrompeu a longa pausa:
— Tudo aqui envelheceu tanto! disse, erguendo a cabeça. Que veio fazer nesse fim de mundo, seu José Maria?
Ouvindo-a por sua vez pronunciar-lhe o nome, sentiu-se José Maria menos distante dela. Parecia que davam juntos o mesmo salto no tempo.
— Vim à procura de meu passado, respondeu.
— Viajar tão longe para se encontrar com uma sombra! E volvendo-se para si mesma: — Veja a que fiquei reduzida.
José Maria pousou o olhar no colo murcho, local do memorável acontecimento.
Aquilo que ali estava poderia ser a mãe de Duília, da Duília que ele trazia na memória, jamais a própria.
— Não devia ter feito isso, advertiu a mulher, como que despertando da profunda cisma.
— O quê?
— Voltar ao lugar das primeiras ilusões.
"Sim, é verdade, pensou o homem, não devia ter vindo. O melhor de seu passado não estava ali, estava dentro dele. A distância alimenta o sonho. Enganara-se. Tal como Fernão Dias com as esmeraldas..."
Ergueu-se, chegou à janela. A tarde caía depressa. Os casebres se fundiam na cinza suja. Uma preta entrou e acendeu o lampião de querosene.
Não tinha mais tempo para criar novas ilusões. Nada mais a esperar. Ficaria por ali mesmo... Floripes fizesse o que entendesse da casinha de Santa Teresa. Felizes os que ainda desejam alguma coisa, os que lutam e morrem por alguma coisa. Felizes aquelas meninas que desceram cantando para Belo Horizonte. A ele, José Maria, só lhe restava encalhar naquele buraco, dissolver-se por ali mesmo, agarrado aos últimos destroços do passado.
Sentiu falta de ar. Bem a seu lado se achava alguém que se dizia Duília, espectro da outra. Espectro também, Pouso Triste; e aquele mesquinho arraial lá fora... e tudo o mais que a noite vinha cobrindo!
Súbita raiva transfigurou-lhe as feições. Voltou a ser o estranho, o que invadira a mansão de miséria e paz da velha professora. Teve ímpeto de espancá-la, destruir aquele corpo que ousara ter sido o de Duília. Desse corpo de que só vira um trecho, num relâmpago de esplendor...
Ante o silêncio sombrio do visitante, a professora teve medo. Procurou aliviar-lhe o desespero contido.
— Vai voltar para o Rio?
Ao ouvir a voz mansa, José Maria enterneceu-se. Sentia-lhe no timbre a ressonância musical da antiga. Sentou-se de novo; e fechando o rosto com as mãos, caiu no pranto. Achou-se ridículo, pediu desculpas. Duília, compassiva, tomou-lhe a mão, procurou consolá-lo. Um sentimento comum aproximava-os.
Espantou-se a professora ao se dar conta do que estava fazendo: dar a mão ao quase desconhecido de há pouco.
Por longo tempo, as duas mãos enrugadas se aqueceram uma na outra. Mudos, transidos de emoção, ambos cerraram os olhos. Duas sombras dentro da sala triste...
O homem não se conteve. Ergueu-se, saiu precipitadamente. A professora correu atrás:
— José Maria! Senhor José Maria!...
A voz rouca mais parecia soluço do que apelo.
— José Maria!
Os moradores se alvoroçaram:
— O que terá havido com a professora?
— Foi depois que chegou aquele estrangeiro alto!
— Quem será esse indivíduo?
E já se preparavam para perseguir o intruso, munindo-se de pedras e pedaços de pau. Mas o desconhecido desapareceu na escuridão.
Parada no meio do largo, Duília arquejava. Ninguém lhe ouvia mais a voz nem lhe distinguia o vulto.
Alguns soluços cortaram a treva.