sexta-feira, 23 de março de 2012

Moacyr Scliar (23/03/1937 - 27/02/2011): Zap



Zap

Não faz muito que temos esta nova TV com controle remoto, mas devo dizer que se trata agora de um instrumento sem o qual eu não saberia viver. Passo os dias sentado na velha poltrona, mudando de um canal para outro — uma tarefa que antes exigia certa movimentação, mas que agora ficou muito fácil. Estou num canal, não gosto — zap, mudo para outro. Não gosto de novo — zap, mudo de novo. Eu gostaria de ganhar em dólar num mês o número de vezes que você troca de canal em uma hora, diz minha mãe. Trata-se de uma pretensão fantasiosa, mas pelo menos indica disposição para o humor, admirável nessa mulher.

Sofre, minha mãe. Sempre sofreu: infância carente, pai cruel etc. Mas o seu sofrimento aumentou muito quando meu pai a deixou. Já faz tempo; foi logo depois que nasci, e estou agora com treze anos. Uma idade em que se vê muita televisão, e em que se muda de canal constantemente, ainda que minha mãe ache isso um absurdo. Da tela, uma moça sorridente pergunta se o caro telespectador já conhece certo novo sabão em pó. Não conheço nem quero conhecer, de modo que — zap — mudo de canal. "Não me abandone, Mariana, não me abandone!" Abandono, sim. Não tenho o menor remorso, em se tratando de novelas: zap, e agora é um desenho, que eu já vi duzentas vezes, e — zap — um homem falando. Um homem, abraçado à guitarra elétrica, fala a uma entrevistadora. É um roqueiro. Aliás, é o que está dizendo, que é um roqueiro, que sempre foi e sempre será um roqueiro. Tal veemência se justifica, porque ele não parece um roqueiro. É meio velho, tem cabelos grisalhos, rugas, falta-lhe um dente. É o meu pai.

É sobre mim que fala. Você tem um filho, não tem?, pergunta a apresentadora, e ele, meio constrangido — situação pouco admissível para um roqueiro de verdade —, diz que sim, que tem um filho, só que não o vê há muito tempo. Hesita um pouco e acrescenta: você sabe, eu tinha de fazer uma opção, era a família ou o rock. A entrevistadora, porém, insiste (é chata, ela): mas o seu filho gosta de rock? Que você saiba, seu filho gosta de rock?

Ele se mexe na cadeira; o microfone, preso à desbotada camisa, roça-lhe o peito, produzindo um desagradável e bem audível rascar. Sua angústia é compreensível; aí está, num programa local e de baixíssima audiência — e ainda tem de passar pelo vexame de uma pergunta que o embaraça e à qual não sabe responder. E então ele me olha. Vocês dirão que não, que é para a câmera que ele olha; aparentemente é isso, aparentemente ele está olhando para a câmera, como lhe disseram para fazer; mas na realidade é a mim que ele olha, sabe que em algum lugar, diante de uma tevê, estou a fitar seu rosto atormentado, as lágrimas me correndo pelo rosto; e no meu olhar ele procura a resposta à pergunta da apresentadora: você gosta de rock? Você gosta de mim? Você me perdoa? — mas aí comete um erro, um engano mortal: insensivelmente, automaticamente, seus dedos começam a dedilhar as cordas da guitarra, é o vício do velho roqueiro, do qual ele não pode se livrar nunca, nunca. Seu rosto se ilumina — refletores que se acendem? — e ele vai dizer que sim, que seu filho ama o rock tanto quanto ele, mas nesse momento zap — aciono o controle remoto e ele some. Em seu lugar, uma bela e sorridente jovem que está — à exceção do pequeno relógio que usa no pulso — nua, completamente nua.


O texto acima foi publicado no livro "Os cem melhores contos brasileiros do século", seleção de Italo Moriconi, Editora Objetiva — Rio de Janeiro, 2000, pág. 555.

quinta-feira, 15 de março de 2012

O homem que quis consertar o mundo

Sérgio Vieira de Mello
(Rio de Janeiro, 15 de março de 1948 - Bagdá, 19 de agosto de 2003)

Há 64 anos, em 15 de março de 1948, nasceu no Rio de Janeiro o diplomata Sérgio Vieira de Mello, funcionário da ONU desde 1969 até 2003, quando foi morto em Bagdá durante um ataque suicida com um caminhão-bomba.

O secretário-geral da ONU, Kofi Annan, afirmava que Vieira de Mello era "a pessoa certa para resolver qualquer problema": ele tinha uma disposição fora do comum para ir ao campo de ação, era corajoso, carismático, flexível, pragmático e muito eficiente na negociação com governos corruptos e ditadores sanguinários, em busca da paz.

Como negociador da ONU, ele atuou em alguns dos principais conflitos mundiais: Bangladesh, Camboja, Líbano, Bósnia e Herzegovina, Kosovo, Ruanda e, entre 1999 e 2002, Timor-Leste, quando se mostraria inflexível nas denúncias dos crimes indonésios.

Vieira de Mello era considerado por muitos como o virtual sucessor de Kofi Annan na Secretaria Geral das Nações Unidas. Em 12 de setembro de 2002, ele foi nomeado Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

Sérgio era conhecido pelo seu carisma e obstinação. Mas a aversão a ostentação de bens materiais também fez parte da sua história. Ele fazia questão de mostrar-se igual aos mais humildes. Na Bósnia, Vieira de Mello recusou colete blindado. Como os civis não dispunham daquele "luxo", acreditava que criaria uma barreira com o povo local se saísse às ruas com a proteção.

Apesar de dispor de carros de luxo, em Nova Iorque, Bruxelas e Paris, ele andava a pé, de táxi ou de metrô. Mas sempre foi amigo dos motoristas colocados à sua disposição e era através deles que obtinha importantes informações sobre o povo local, principalmente suas necessidades, seus anseios e a localização dos bairros mais humildes onde viviam os refugiados, com quem ele se reunia espontaneamente para ensinar os princípios básicos de moral, ética e cidadania.

Sérgio Vieira de Mello foi enterrado no cemitério de Plainpalais (Cimetière des Rois), em Genebra. Alguns meses após o atentado, a ONU realizou uma homenagem póstuma, entregando o Prêmio de Direitos Humanos das Nações Unidas àquele que foi um dos mais importantes funcionários da entidade.


Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A9rgio_Vieira_de_Mello

sábado, 3 de março de 2012

Nem Luiz Gonzaga acreditava em Asa Branca

Eterno clássico do povo nordestino, a canção foi tachada de "música de cego". 

"Não boto muita fé nessa música, porque é muito lenta, cantiga de eito, de apanhar algodão", disse Luiz Gonzaga para Humberto Teixeira. O advogado cearense quis letrar aquela toada folclórica mostrada pelo amigo, mesmo com o receio dele. A grande parceria, que estava no início, rendeu então seu terceiro fruto. No próximo disco de Gonzaga, que traria a marchinha “Vou Pra Roça” no lado A, “Asa Branca” poderia entrar no lado B – os 78 rpm tinham uma música de cada lado.


Em 3 de março de 1947 estavam Gonzaga e Teixeira, mais a banda, para gravar as novidades no estúdio RCA, Rio de Janeiro. “Quando olhei a terra ardendo, qual fogueira de São João...”, entoou o vozeirão. Eis que um dos músicos pega um chapéu e vai passando entre os colegas. “O que é isso?”, perguntou Humberto. “É que isso parece música de cego pedir esmola!”, brincava o violonista Canhoto. Ele não se conformava que, depois de tanto sucesso, o Rei do Baião estivesse cantando “moda de igreja”.

Assim que o disco foi lançado, “Vou pra Roça” passou totalmente despercebida. Mas “Asa Branca” estourou no ato, fazendo de Luiz Gonzaga um dos maiores astros da música brasileira.

Eterno clássico, hino do povo nordestino, a canção chegou a virar “White Wings”, em inglês. Teve mais de 500 regravações no mundo todo, em diferentes línguas. Humberto Teixeira gostava de lembrar: “Aquele dia, no estúdio RCA, os músicos que brincavam com a toada mal sabiam que estávamos gravando ali uma das páginas mais maravilhosas da música brasileira”.




O tema da canção é a seca no Nordeste brasileiro, que faz migrar até mesmo a asa-branca (uma espécie de pombo). A seca obriga, também, um rapaz a mudar da região. Ao fazê-lo, ele promete voltar um dia para os braços do seu amor.


Fonte: http://www.almanaquebrasil.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=8899