domingo, 10 de novembro de 2013

Na divisa entre vida e literatura

Historiadores afirmam que o mais importante personagem da literatura argentina teria sido inspirado num homem de carne e osso encontrado por Hernández em suas andanças

Por longo período, os argentinos irritaram-se com uma afirmação que consideravam mera demonstração da empáfia brasileira. Era-lhes muito ofensiva a ideia de que Martín Fierro, o gaucho por excelência, criação imortal de José Hernández, pudesse ter sido parido em Santana do Livramento, na região da Campanha do Rio Grande do Sul. Os vestígios deixados pelo poeta, entretanto foram dobrando a resistência. Em 1940, o jornalista J. M. Fernández Saldara, do jornal portenho La Prensa, perseguiu os rastros do poeta até a cidade brasileira, rompendo uma barreira — na Argentina, mencionava-se sempre rapidamente o exílio de Hernández no Brasil, eludindo-se o nome de Santana do Livramento. Hoje, praticamente não se duvida que a primeira parte do livro, publicada em Buenos Aires em dezembro de 1872, tenha sido escrita à mão numa caderneta de bolicho quando José Hernández se alojava num dos quartos da casa do comerciante espanhol Pedro Garcia. O prédio ainda resiste, apesar de várias agressões, na esquina das ruas Rivadávia Correa e Uruguai.

"A la luz de las estrellas", Fernando Romero Carranza, reprodução/ZH

No ensaio que escreveu sobre o poema fundamental da literatura argentina, Jorge Luis Borges comenta: "Fugiu, dizem que a pé, para a fronteira com o Brasil. Umas palavras reticentes, estampadas no prólogo de Martín Fierro, dizem que a composição desta obra o ajudou a fugir do tédio da vida do motel; Lugones entende que esta referência é a um hotel da Praça de Maio, no qual ele improvisava o poema 'entre seus negócios de conspirador'; outros interpretaram que alude a Santana do Livramento, onde os gaúchos orientais e rio-grandenses traziam-lhe a lembrança dos gaúchos de Buenos Aires. Algumas locuções próprias da campanha do Uruguai parecem justificar essa conjetura".

Por aqui, a tese do Martín Fierro brasileiro volta e meia reaparece em páginas de jornais e livros, no descompasso da memória nacional. Mesmo nas ruas de Santana do Livramento há os quem nem têm ideia de quem foi José Hernández. As pessoas se espantam quando alguém, num momento raro, para junto ao maltratado prédio na Rivadávia e tenta decifrar as inscrições das placas ali pregadas. Mas o assunto já agitou mentes curiosas. Na juventude, o pesquisador tradicionalista Paixão Côrtes não descansou enquanto não conseguiu um exemplar da obra. Acabou indo com três à "casa de José Hernández" , como é conhecido o solar centenário onde o poeta viveu em Livramento. O jovem Paixão arrancou autógrafos de Belmira Garcia, filha do proprietário do imóvel histórico.

Pode parecer excessivo dar tanta importância a um aspecto à primeira vista circunstancial para louvar um punhado de tijolos soldados por cimento e barro. Na literatura, entretanto, nem sempre a razão é vencedora. Amantes das letras apaixonam-se por personagens, pontos topográficos e rochedos, como também por pessoas. Martín Fierro tornou-se um semideus. Como seus traços não deveriam provocar adoração? Portanto, não seria exagerado afirmar que em Santana do Livramento estão os despojos de um templo. Meio esquecido, é certo, mas mantendo uma pátina de sagrado. Nele, teria nascido um ser calcado na imagem do gaúcho comum que se tornaria sobre-humano.

Da guerra, tormento que perseguiu Martín Fierro, nasceu Martín Fierro. Numa dessas sangrentas revoluções típicas do pampa, não importando de que lado da fronteira, em que a peonada era recrutada sem ter escolha, e os gaúchos, caçados nos bolichos e nas estradas pelos esbirros dos chefes políticos. Em abril de 1870, a província de Entre Rios foi varrida pela violência. O caudilho Ricardo López Jordán sublevou-se contra o governo local. Um comando rebelde assaltou o palácio e assassinou o governador Justo José de Urquiza, causando comoção nacional. Acreditando que a vitória estava consolidada, López Jordán entrou com seus homens na capital, Concepción del Uruguai, e foi eleito governador pelo parlamento. O presidente argentino, Domingo Faustino Sarmiento, entretanto, não quis deixar impune o homicídio de Urquiza e enviou uma expedição militar contra os rebelados. Por longos meses, as brigadas legalistas caçaram, com constantes encontros sangrentos, os revoltosos entrerrianos. Hernández incorporou-se às hostes de López Jordán em novembro. No mês seguinte, as forças rebeldes foram completamente desbaratadas e seus líderes fugiram para o Uruguai e o Brasil.

Hernández foi obrigado a seguir os passos do chefe, que rumou para Santana do Livramento, a fim de fugir das tropas legalistas depois da derrota rebelde em Naembé. Nos seus calcanhares cavalgava o bando de um certo Fidelis, a mando do governo colorado. Fernández Saldara duvida que a viagem tenha sido feita a pé. "O mais provável é que tenha chegado ao povoado brasileiro pelas diligências do Salto Oriental." Na narrativa viva do historiador uruguaio Alfredo Lepro, a chegada dos fugitivos é digna do estilo imaginoso de Hernández: "Cruzando o fio de água barrenta do Curapirú, dirigem-se ao casario (cento e poucos ranchos e algumas casas de alvenaria. Essas últimas, quase todas de comércio). Pelo areal da rua principal voltam a encontrar a 'linha divisória' a 10 ou 12 quadras, pelas barrancas de terra vermelha, 'Santana do Livramento' no Brasil, onde vão parar na Estalagem dos Garcia. As pessoas os rodeiam, curiosas e ávidas de saber coisas. A hospitalidade da família do estalajadeiro propiciará tertúlias onde não falta o truco com seus improvisos em verso".

Em Santana do Livramento, Hernández reuniu-se a Juan Pirán e Pedro Aramburú, companheiros no levante contra Urquiza. Os dois eram considerados diretamente culpados do assassínio do governador entrerriano, foragidos da Justiça argentina. A situação da dupla era complicada pelo fato de serem residentes em Montevidéu, vistos como bárbaros estrangeiros, portanto. Numa carta pública, Aramburú alegava inocência. Garantia que ambos, no trágico entardecer de 11 de abril de 1870, limitaram-se a ficar do lado de fora do palácio, alheios às intenções dos que entraram na sede do governo. Acreditavam afirmava Aramburú, que o propósito era aprisionar o general. O jornalista uruguaio Martín Correa, morador de Rivera, sustenta que outro emigrado também os acompanhava na época: Olegário Vitor Andrade. 

Nascido em Alegrete, Andrade foi ainda criança para a Argentina. Educador — Correa o compara a Paulo Freyre —, Olegario foi deputado quando voltou do exílio e seu nome batiza inúmeras escolas na Argentina. De acordo com Alfredo Lepro, autor de Vida de José Hernández y su Amigo Martín Fierro, uma lembrança cutucava o espirito de Hernández no exílio. Ainda em solo argentino, ele teria cruza com um gaúcho de nome Martín Fierro, cujas histórias atiçaram a imaginação do poeta.

Contava-se que, nos momentos de ócio Hernández ia para a Praça Caxias (agora General Osório), e sentava-se nas proximidades do local onde agora está alojado seu busto. Sob as frondosas árvores, ele buscava a inspiração para contar a história do gaúcho valente e justo que combatia a injustiça, movido por seu próprio código de conduta. O idealismo do poeta também teria deixado rasgos na vida social de Livramento. O surgimento, logo depois de sua partida, da loja maçônica Caridade Santanense, seria um legado da militância de Hernández. Para compor seu libelo contra a desigualdade social com as cores tradicionais do pampa embrutecido, Hernández teria recorrido a um guasca de carne e osso.

O poeta gaúcho J. O. Nogueira Leiria, autor de uma tradução de Martín Fierro editada por ocasião do centenário da publicação original do poema, assegurava que o personagem era brasileiro antes de habitar os versos de Hernández. Na edição de 14 de setembro de 1957 do jornal Correio do Povo, Leiria escreveu: "Talvez como testemunho de sua gratidão, batizou o herói de seu poema com um nome que não era estranho naqueles pagos: Martín Fierro, famoso gaúcho do Rio Grande do Sul. A simples menção de seu nome fazia com que tirassem o chapéu respeitosamente os mais corajosos gaúchos da Banda Oriental, do Chuy até Paysandú e de Rivera a Montevidéu".

Outros autores também sustentam que Martín Fierro era um personagem real, antes de se tornar eterno. O uruguaio Rafael Velazquez encontrou algumas evidências, que publicou como parte da obra La Personalidad Historica de Martín Fierro. Um memorando militar anota o recrutamento do "indivíduo Martín Fierro" pelo Batallón 11° de Linea, em Azul. A data é de 16 de agosto de 1866. Mais adiante, Velasquez acrescenta outro documento que sugere registrar os rastros o gaúcho independente e marginal retratado no poema. Datado de 2 de agosto de 1866, o bilhete anuncia que o juiz de paz de Monsalvo sentenciou ao serviço das armas no Batallón 11° de Linea, "o indivíduo Melitón Fierro por feridas".

O historiador uruguaio ainda iria mais longe em suas investigações sobre a suposta existência de um modelo vivo para o personagem de Hernández. Em 28 de agosto de 1967, enviou uma carta ao poeta riverense Carlos Berruti, em que afirma que o chefe do Arquivo dos Tribunais de Dolores, César Vilgré La Madrid, enviou-lhe um antigo livro. Tratava-se da biografia de Pablo Vera, "o que peleou com Martín Fierro". Para o historiador, estava extinta "toda dúvida relativa à existência carnal de Martín Fierro".

Para Martín Fierro, não há mais resistência. Mas não restou documentação da presença de Hernández nas ruas de Livramento. Dúvidas são saudáveis para a preservação da verdade. Mas poucas pessoas de bom senso poderiam refutar o fato de que o poeta habitou a cidade. Nesse lapso, quase seguramente, ele começou a escrever o poema mais célebre da letras argentinas, em que pesem as ressalvas ao estilo e à qualidade lírica. Já avisava Martín Fierro no canto 1.192: "É a memória de um grande dom / qualidade meritória, / e aqueles que nesta história / suspeitem que lhes dou pau, / saibam que esquecer o mau / também é se ter memórias." (Ricardo Carle, Especial/ZH)


Nenhum comentário:

Postar um comentário